terça-feira, 29 de julho de 2014

Recapitulando

Já quis que voltassem; partiram.
Já quis catarse; dormi.
Já fui atrás; disseram não.
Já quis deixar; fiquei.

Já quis puxar; deixei.
Já quis partir; nem fui.
Já quis voltar; não deu.
Já quis falar; ouvi.

Já tentei negar; chorei.
Já pensei ferir; não ousei.
Já quis dizer; fizemos amor.
Já quis lembrar; ignorei.

Já estive a par; fui embora.
Já quis participar; fechei a porta.
Já quis mudar; tentei.
Já fui em paz; mudei.

Já desejei paz; fiquei surdo.
Já tentei consertar; acabou o tempo.
Já fui de rir; comecei a lembrar.
Já quis passar; voltei.

Já tentei romper; sorriram.
Já consegui avançar; me aconselham.
Já tentei escrever; emudeci.
Já quis acordar; sonhei.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

"Tristeza", de Aureliano Lessa

Dizes que meu amor te encanta a vida
Teus alvos dias, teus noturnos sonhos:
Mas tens a face de prazer tingida,
Teus lábios são risonhos!

Não podem florescer o amor e o riso
Nos mesmos lábios da paixão o fogo
Mata as rosas do rosto, de improviso
Gera a tristeza logo.

Olha: minh’alma é pálida e tristonha.
Minha fronte é nublada e sempre aflita.
Entretanto, uma imagem, bem risonha
Dentro em minh’alma habita.

Mas esse ermo sorrir que tenho n’alma.
Não é como da aurora o riso ardente:
É o sorrir da estrela em noite calma.
Brilhando docemente.

Ah! se me queres a teus pés prostrado.
Troca o riso por pálida beleza:
Mulher! torna-te o anjo que hei sonhado.
Um anjo de tristeza!

domingo, 13 de julho de 2014

Impressão Dissolvida

Contemplo com horror certa e estranha nova graça de mandar. Olho com dúvida e temor minhas mãos vazias - as lágrimas que cá despencam não fazem ficâncias e vão-se descerimoniais mãos abaixo, salgando a minha pele quente e encharcando-me com o que vaza de meus olhos ao não mais morar em mim. Corre uma memória líquida, diluída, salgada e dúctil na essência, furiosa e intempestiva no querer cair.

E meus olhos - enchentes em vazão, represas rudes e ruinosas, mãos
entreabertas que deixam escapar as águas - estatelam-se no chão como semente de erva daninha, de mato ruim, de planta que não se quer.

E meus dedos - lascas de ossos cobertas com carne que vacila e teme ou não crê - procuram por um fogo na noite ou por velas acesas que se possa apagar.

E minha boca - um ninho aberto de aves já idas da estação - treme sozinha no espasmo medido que chamo de rosto.

Vão, minhas lágrimas. Meus olhos, órfãos de sal, minhas faces, viúvas com dó, os meus pelos, bichos sem dono, e meu queixo, o penhasco de onde pulam as lágrimas: Minhas memórias suicidas, não-remidas, diluídas, dissolvidas.


sexta-feira, 11 de julho de 2014

Os Vidrilhos da Moça que Corre

         Nem incêndio sobre todo o ouro que habita as colinas cavadas de Dur-Ulrrúrias poderia comparar-se ao fulgor do rosto dela quando a ilumina a fronte o sol da manhã – um amante em chamas que se posta diante dela debruçado no firmamento a vê-la passar, a contar, cantarolar, trançando miçangas em couro sob a luz de alvorada.

         Nem todas as estrelas que deslizam no golfo negro entre as nebulosas do céu poderiam fazer-lhe ao charme particular um par quando ela dança e bate o pé descalço sobre a grama viva – um tapete de sedas e cerdas que se agrada ao espalhar-se sob ela para que ela o possa pisar, e para que sobre o dorso de verdes o corpo dela possa rolar, ou simplesmente sobe em verdes nas pedras para vê-la passar, a contar, cantarolar, trançando miçangas em couro cercada de grama.

         Nem todas as aves que habitam cantando a Mata do Corvo poderiam ganhar, em beleza, na música que ela cante ao desdobrar os lençóis da casa da mãe ou ao a lavar panos brancos na beira do rio – uma fita longa de prata do céu que serpenteia como um gato folgado aos mimos que a voz dela causa, o afago audível da garganta dela que se ouve ao vê-la passar, a contar, cantarolar, trançando miçangas em couro à beira do rio.

         E nem todo o ouro se ofertado a reis, nem as estrelas se ofertadas aos sábios, nem as aves da Mata do Corvo se ofertadas às damas podem comprar a graça do sorriso dela, da alma dela, do canto dela, do cheiro dela, da corrida dela, do quadril dela, da dança dela, do pé dela, das mãos dela; que dedilham, que tocam, que contam, que balançam em dança conforme ela passa, conforme ela conta, cantarola, trança miçangas tão longe de mim.