terça-feira, 24 de junho de 2014

As Asas do Pai

Enquanto desponta em mim uma vontade que antes nunca tive e se fortalece um instinto reconhecível, escrevo:


     Um dia, ela, proibida pela mãe de ir à escola sem o uniforme, chegou no meu escritório procurando um livro novo para ler, um que fosse "de gente grande". Chamei ela para perto, sentei-a no meu colo. Tão pequena, tão humana, tão já-gente.

"Você não tem que crescer agora. Ler não vai fazer você crescer, esticar, só vai fazer você virar uma pessoa melhor. Mas você ainda assim não vai poder ir pra escola sem uniforme."

"Mas todo mundo que vai pra escola vai sem uniforme."

"Isso é o que você vê, passarinha, mas você não vê o resto."

     Ela olhou para mim com aqueles olhos de quem não entendeu, mas no fundo daquelas cores claras eu via a teimosia da mãe dela tentando esconder a dúvida sob a meiguice e a boniteza.
"Se você nunca voar um pouco mais longe, se nunca abrir um pouco mais as asas, nunca vai saber onde termina a gaiola e começa o céu. Enquanto não fizer isso, vai ver sempre ver o céu e nunca verá as barras, ou nunca verá as barras mas verá sempre o céu."

     Ela baixou a cabeça para meus papéis espalhados na mesa. Tenho certeza que estava lembrando de algum texto que tivesse lido que ajudasse a entender o que eu quis dizer - sendo um pai malvado, adoro metaforizar.

     No dia seguinte ela foi sem o uniforme por baixo do casaco. Pelo que a diretora informou, desfilou nos corredores da escola com aquela blusa que, apesar de nada chamativa, não era do uniforme.

   Ela e eu fomos cúmplices naquela traquinagem. Enquanto a mãe dela falava e gesticulava descrevendo meus círculos pela sala, eu, no sofá, olhei para ela e encontrei seus olhos. Foi a primeira vez que vi tanta felicidade, tanto contentamento, tanto orgulho nos olhos da minha filha. Eu me enchi de alegria por aquele pequeno ato de rebeldia, de um orgulho cheio de bobeira e amor por ela.

     Nunca mais ela quis ir sem uniforme para a escola, mas também nunca mais ela foi a mesma. Ela estava mais contente consigo, mais feliz em vestir aqueles trajes padrão. Ela não havia perdido o céu, sabia disso. Descobrira por conta própria.

     Crescem tão rápido, esses passarinhos.


domingo, 22 de junho de 2014

Constelar:::O Decadente

Sou o assomo místico e decadente em mim. Sou o que não presta em mim, sou o que não dá pra salvar de mim mesmo. Sou a parte de mim que está em decadência, sou apenas lembrança do resto de mim, que morreu, foi sequestrado ou se perdeu. Sou o que sobrou, um restolho, ou sou aquilo que ficou porque ninguém quis, nem eu. Sou a soma de restos, um conjunto de fragmentos, um amontoado de partes que funcionam em dissonância. Ilhas sóbrias e sombrias num mar de álcool, nuvens azuis ou sem cor no firmamento verde, um arrebol vermelho que nunca desponta, terras perdidas na imensidão vazia. Sou o silêncio de muitas vozes que competem entre si, o silêncio perdido de poucas razões quando compito por uma atenção genérica e maioritária dentro de mim, que agrade a mim. O lado bom, e há, é que esse templo em escombros, essa ruína em ruínas, não é simples estrela no vazio. Pela lógica de luz que fique no vácuo, sou constelação.
Constelo: constelam, minhas partes, todas juntas.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Mentirosamente

Desde antigamente, a minha mente, quando mente, mente sem que a antiga atente para a mente - não a minha, que mente, mas para a sua, que sente. E a minha, que é antiga, e mente, antigamente dava-se a mentir o que sente, porque se sente, mente. A mente que mente sente que antigamente a mente sentia o que hoje mente, não sente.

Mas se a minha mente novamente sente que mente, talvez seja o ente, doente, que agitadamente atenta para a mente que, quando antigamente, se punha contente no que sofre do que sente, ou quando sente que mente. Só, a mente, mente somente quando sente que novamente sofre silente, sem que se agite a mente com o que sente, somente se sente.

E a mente, antigamente ou no presente, mente se sente. Porque se sente, mente; e se mente, sente.

Acertadamente.
Silenciosamente.
Encarecidamente.

Acerta a mente, silencia a mente, encarece a mente.

Dolorosa mente...