sábado, 26 de abril de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Três, Parte II

Homem vem, homem vai. Kor-i-Sûm'Bar fica.
Homem nasce, homem morre, Kor-i-Sûm'Bar cresce.
Povo de homem planta, povo de homem constrói. Povo de Kor-i-Sûm'Bar pilha, povo de Kor-i-Sûm'Bar queima.
Homem se arma, homem se cobre de aço. Kor-i-Sûm'Bar mata, Kor-i-Sûm'Bar se cobre de sangue.
Inverno vem, homem fica. Inverno vem, Kor-i-Sûm'Bar ataca.
Kor-i-Sûm'Bar mata. Homem morre.
Inverno vai, povo de homem morre. Inverno vai, povo de Kor-i-Sûm'Bar fica.
Inverno vai, povo de homem nasce. Inverno vai, povo de Kor-i-Sûm'Bar cresce.
– Pictogramas bélicos traduzidos de velinos nas Colinas de Forragem, anexos de "Sobre os Homens-Monstro", escrito por Featta, o Gago.


Q
 uem sabe dizer onde a humanidade começa e termina dentro do homem? Via de regras, associar um ato à noção de "humano" serve tanto para enaltecer quanto depreciar: Deu aquela senhora uma moeda ao mendigo feridento, dirão que seu ato foi humano. O irmão avarento apunhale seu próprio irmão por causa de herança, dirão que é do ser humano agir assim. Ser humano é ser monstro ou é ser virtuoso? Digo eu, sem maiores problemas, que ser humano é ser inconstante; É ser a nau que leva mercenários para melhor perpetrar a barbárie, e ser a nau que leva os refugiados para longe do conflito para auxiliar os que sofrem.

   Ser humano é não saber ser direito, não saber interpretar facilmente. Somos, ainda, deveras limitados em nossa compreensão de atos e fazeres até mesmo corriqueiros. Não sabemos, afinal, o que achamos que é certo ou o que é errado. Sabemos apenas que fazemos, e se alguém nos pergunta depois, pode-se encontrar conforto ou alívio ou contrição no conselho vindo de outro ou de nossa própria mente no dizer que fizemos aquilo que achávamos que era direito fazer. Se de fato o é, se de fato o foi, digam as horas.

   Ser humano é ser vítima constante da aflição. Estávamos Azandre, um mercador néscio e eu, Varyn, riscando as paragens quietas das Terras Algeíades em minha quadriga de ferro puxada por cavalos negros. As bestas quadrúpedes, tão mais amigas do homem que o cão por terem de acompanhá-lo na batalha, bafejavam o calor de seus corpos em nuvens imensas de vapor conforme aumentava o frio que regelava os músculos de homem e cavalo.
   A quadriga era de ferro, mas leve como a de madeira porque fora dobrada sob martelos cheios de encanto e runas, cujos cabos eram de madeira nobre e retirada do coração de florestas já dizimadas. Cada peça saiu do fogo azulado das forjas dos Magos e foi esfriada em água fria do gelo derretido, tenho refletida na superfície a luz das estrelas além.
   Estrelas essas que eram visíveis nas crinas esvoaçantes dos cavalos, em seus dorsos e flancos, pois era noite em sua pelagem de tal modo que pareciam estilhas do céu noturno. Também eles eram mais Magia do que besta, animais feitos de sangue, carne, osso e também da Arte, desenhados e paridos para melhor servir aos interesses da Convocação. Eles corriam tão velozmente puxando nossos pesos e mesmo assim ultrapassariam os mais saudáveis dos cavalos selvagens das Algeíades, famosos por suas carreiras imbatíveis.

   A viagem, em terreno irregular pelas colinas, foi ficando mais fácil porque as Colinas de Forragem eram circundadas por campinas extensas de onde brotavam as elevações que davam nome ao local. Como toda a grama das Algeíades, a cor do chão era de um verde pouco agradável, de uma monotonia quebrada apenas pelo branco gelado e salpicado das flores da tundra.
   Encimando muitas daquelas colinas estavam ruínas de fortes ou postos de vigia de outrora, e muitas destas estavam ocupadas por novos donos: os homens-monstro que habitavam o Norte, uma estirpe selvagem cuja pele era couro e cujo sangue era verde e frio. Eram homens horrendos à distância, pouco menos que bestas de perto: saíam de suas bocas os dentes, grandes e afiados em demasia, e seus narizes eram pequenos, obra de pouco faro. As orelhas eram quase grudadas à cabeça, evitando assim o frio cortante, e os olhos eram grandes e escuros, mostrando a selvageria acima da mandíbula pronunciada do crânio.

   E se as faces eram desprovidas de qualquer chance de beleza humana, pois à parecência de bestas também estava associada a abundância de ângulos retos e a ausência de curvas suaves, o corpo era ainda mais espantoso: os músculos duros como pedra pareciam naturais, pois não havia um de corpo fraco ou moloide entre seus números. Eram de largura superior à dos homens mais fortes, e sua altura superava a de muitas estirpes dos reinos de gente. Com a mão nua, pinça de aço, podiam quebrar o pulso ou o pescoço humano como se fosse por gracejo distraído. Que útero tão monstruoso poderá ter parido primeiro aquela gente, que já foi humana um dia?

   Mas quem fazia essa pergunta eram os mais simples, ignorantes da verdade ancestral: Eram aqueles seres, ogros do Norte, o que restou de experimentos torpes há muito esquecidos. Gente dada às magias do sangue e da carne uniram na cópula tantas espécies diferentes que por fim houve o parto de uma linhagem numerosa do que seria a gênese dos homens-monstro. Aqueles orcos eram selvagens e brutos, mas um diaforam responsáveis pela proteção de tantas cidades e vilas humanas que ninguém ousaria pensar-lhes mal se soubessem a verdade.
   Só que tal verdade foi esquecida pelos homens, enterrada na cova funda da ingratidão; e o que a vergonha dos homens fez com essa verdade, o orgulho, a vergonha e o ódio justo dos homens-monstro fez melhor. Não mais suas gerações novas lembravam do passado de servidão à raça que os espezinhava desde que se lembravam.

   Porém nem sempre as coisas foram tão amargas. Se de tempos em tempos eles atacavam vilas, aldeias e caravanas, queimando, matando e pilhando, em outros tempos comerciavam e estavam abertos ao diálogo. Suspeitam os cientistas de feras e monstros entre os Mudadores que esse comportamento de paz e interesse é intercalado com períodos de violência de acordo com ciclos estabelecidos no sangue dessas criaturas, que por não plantarem e pouco inventarem pegam o que precisam de quem o tem. A geração pafícifica e cultural sobrevive com o que a geração violenta pilhou e deixou de herança, além de caçar seu sutento e fabricar apenas as armas que usam com presteza e as tendas e barracões de pele animal onde se abrigam do frio.

   Até o acampamento de uma das tribos daquela gente monstro que nos levou o mercador assustado e trêmulo. meus cavalos não precisavam de comando ou chicote - apenas o meu pensar os guiava, se eu segurasse as rédeas. A quadriga subiu por um aclive tortuoso, em zigue-zague, até o portão de madeira e ossos enormes que permitia o acesso a um forte de homens-monstro.
   Postos empoleirados acima do portão estavam três monstros: harpias que vieram do sul há tanto tempo que deviam estar já acostumadas ao frio. Tinham bocas enormes cujos dentes eram tantos, como agulhas, que suas línguas eram couro grosso após tantas cicatrizações necessárias. As cabeças calvas eram feias, da base do crânio redondo pendiam mechas de cabelo seboso e cinzento. As asas eram negras, imensas, e braços raquíticos as uniam ao poleiro acima do portão, estando desse modo agarradas a um tronco fino e firme com seus dedos longos terminando em garras de navalha.
   "Olha, olha a carne que vem tão preste até o portão dos monstros-homem!" disseram as três, em coro. Suas vozes faziam mal a quem ouvia e matariam os sensíveis pássaros canoros de tão feias e estridentes "Olha, olha que lá vem um coração bom e quente para cada uma de nossas bocas famintas!"

   Os cavalos empinaram todos ameaçadores, batendo no ar seus cascos de fender crânios, com ferraduras de partir ossos. Escoicearam o vento, e sua violência possante fez as monstras horrendas ganharem os céus como morcegos enormes, apenas para voltarem ao poleiro depois de grasnarem assustadas.
   "Eia, eia que estes cavalos têm estrelas no pelo. Eia, eia que há um Mudador com a mão esqueda nas rédeas, e ele tem na mão direita uma lança que fende corações!"

   E tanto estardalhaço chamou os ocupantes do forte para a paliçada, e de cima das torres do portão eles apontaram para nós olhos monstruosos e flechas de ferro.
   "Quem é que aqui vem, até Kor-i-Sûm'Bar, senhor de crânio largo e língua vermelha, rei de flechas e senhor de fortes?" Inquiriam as harpias com voz de gralha.

   Fiz a quadriga virar, de modo que bati com a lança no portão. O eco da pancada foi muito mais alto e fez vibrar as toras muito mais que qualquer um que visse meu gesto poderia julgar possível.
   "Bate ao teu portão Varyn, o Agoureiro. Abra a porta para mim, gente de Kor-i-Sûm'Bar, que venho eu atrás de uma mulher ferida de morte!" e o pesar em minha voz escapou tão rápido que eu não pude detê-lo, e foi o suficiente para fazer manchar de negro e murchar a casca das madeiras do portão e amarelar os ossos enormes que faziam-lhe o arco. Penas feias e negras caíram das asas das harpias, que de novo falaram:

   "Ai, que vêm um coração envenenado de tristeza para matar-nos com pesar! Ai, que nossos dentes quebrariam roendo seus ossos pesarosos, ferindo-nos com tristeza! Ai!" E saíram voando para longe, e não voltaram. Ao invés disso levantaram os portões, e diante de mim e de minha companhia estava posto um homem-monstro enorme e ameaçador de tantas maneiras que meus cavalos começaram a patear nervosos o chão e Azandre levou a mão à espada. O mercador que nos guiara tremia.

   "Kor-i-Sûm'Bar! Kor-i-Sûm'Bar" Gritavam vozes indistintas que vinham de dentro do forte. Nem soube eu dizer se eram só de sua gente ou se também eram vozes da colina, que também temia seu senhor. Louvavam-no como se adula uma fera imensa no escrever - mais por medo do que por admiração.

    "Várias flechas voaram de sua mão, Varyn, e lanças de fogo crivaram meu povo há muitos anos quando, a cavalo, você derrubou o pai de meu pai em batalha. Odeio aquele que matou meus ancestrais, e lutaria para ver cortada a sua garganta se a hora fosse outra."

   Sem me mover na quadriga, eu respondi:
   "Que seja essa hora de grande valia, Kor-i-Sûm'Bar, Senhor do Portão das Harpias, pois senão ponha de lado seus préstimos, arme-se com ferro e lembranças e vem, luta pelo corte em meu pescoço, que ei-lo aqui proferindo e aquecendo o vento das Algeíades!"

   O silêncio que veio foi tão pesado que apenas o vento silenciava o bater acelerado de tantos corações. Um cavalo riscou o chão quando Kor-i-Sûm'Bar deu um par de passos para trás, estendendo o braço imenso:
"A hora é de grande valia, e hoje respeito Varyn, o dos cavalos negros, o amigo de nosso povo que o salvou da fome ao mandar para cá as caravanas de pão e de carne salgada, evitando assim que saqueássemos as redondezas já pilhadas e que tivéssemos de passar o inverno roendo ossos e madeira de cupins. É por este mérito, e por amar quem auxilia meu povo que eu o levarei até a tenda onde falece aquela que chamou seu nome antes do veneno maligno roubar-lhe tanto da voz!"

   Encaminhei a quadriga para dentro do forte. A passo lento, para que Kor-i-Sûm'Bar nos acompanhasse, e com ele, dezenove guerreiros de sua gente, armados sobretudo com o pavor que suas silhuetas selvagens impunham. Era sabido por muitos que o cheiro daquela gente também causava pavor, e que suas vozes também, e que também apovoravam mais ao mostrarem-se numerosos. Que terror devia tomar conta dos simplórios ao verem descer das colinas, ao seu encalço, uma turba daqueles orcos pavorosos.

   Mas estávamos ali como convidados de grande urgência. Kor-i-Sûm'Bar ofertou-me sua hospitalidade, e desse modo eu sabia que estávamos todos em chão seguro. Ele esperava assim pagar uma dívida que sua tribo tinha para comigo, e só então eu lembrei que de fato eu enviara para as Algeíades carroções e bois carregados de mantimetos invernais para que os saques parassem. Tributo ao monstro, eis aí uma das mais antigas coisas que acontecem quando o humano e a besta se encontram.

   Se o tributo pago era coisa humana, no que tange o certo ou o errado, as horas diriam. E se era humano o ato que levava à morte lenta e agoniada de Mana, as horas o diriam. E quantos de nós ali presentes chorariam sua morte, eu já posso atalhar: Azandre estava tomado pelo medo de perder a noiva. Eu, contudo, perdia uma amante do tempo passado.
   A mãe de um filho meu estava, talvez, prestes a se unir a ele no sono dos que para as tumbas vão...   

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Outro trecho continuando outro trecho

Acho que transávamos todo dia, ou quase todo dia. Com o tempo foi ficando natural a gente pular as preliminares. Eu que percebi isso. Aquela urgência, aquele já se encontrar com desejo querendo ser satisfeito. Aquele blusão de lã era meio folgado, e se deixava os pulsos e as mãos dela mais cobertos de pano, vez ou outra deixava o ombro escapar pela gola.

Bicho no cio só tem um desejo. Necessidade fácil de entender, de uma coisa. Gente no cio não se preocupa com mais nada. Era o nosso caso em uma relação, não num caso, mas eu não sou de criar caso por um caso de cio na relação de um casal sem caso. A gente era casal, porque casal acasala. Faz casa ou faz casal. A gente se atracava. Um com o outro, um no outro, os dois no colchão.

Meu apartamento era um mar fundo. Ali a gente se afundava. No colchão, que ficava no chão, a gente se atracava. Se ancorava.
Perdi meu apartamento. Deixei para trás o colchão. Fiquei derivando.
Um divã é um rio raso, mas eu ando calado, e de calado baixo. Sem problemas.

Mas eu não me atraco com a morena. Com ela eu não acasalo: nem casa, nem casal. É uma relação médico-paciente com ocasionais intervenções carnais de cunho transformador. Ela, me conhecendo, eu, talvez, me curando. Mas é pouca cumplicidade pra muita terapia. Pouco tesão pra tanto Lato sensu sensual.

Na cama dela, baixa e longa e sutil como um divã que tome proporções mais gigantescas que meu ego - um divã para dois, um divã de casal - a gente se analisa. Mas aí tem a urgência não em começar, mas em terminar. A gente se beija querendo desgrudar, mas como somos simétricos e complementares de um modo meio capenga, temos o mesmo ponto de equilíbrio e ao nos soltarmos em cima a gente se prende embaixo. E se desprende embaixo mas se cola em beijos em cima. Sempre na urgência de gostar, de se fartar, mas de logo acabar com essa gangorra de coerências. Porque por mais que ela queira me entender e me desvendar, ela é gente e gente tem medo do que pode encontrar. Gente quer saber, mesmo tendo medo de entender. Ela quer descobrir como funciona um ciclo de águas bebendo apenas a chuva.

E se eu, antes com a branquela, tinha aquela urgência em começar uma transa e gostava quando parecia que a gente nunca mais ia conseguir terminar de se mexer em sintonia, ficando sempre naquele motocontínuo caótico, agora eu estou vivendo a urgência de terminar logo. Porque quem já gostou da perpetuidade só se ferra com a rotina. Quem viveu em movimentos progressivos e infinitos se dá mal com um zigue-zague efêmero e apressado.

Até que, no fim de ambas as coisas, o que me restava e o que me resta acabam por ser silêncios tão diferentes que eu não sei, nunca, o que dizer. Silêncios ora seguidos por um violão, agora seguidos pelo ventilador de teto. Eu fico com mulheres que não me ajudam a saber que homem que eu sou.

terça-feira, 22 de abril de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Três, Parte I


Crônica Terceira – Do tempo em que Azandre reconheceu o amor e o desespero tão próximos, duas vezes; E de como os assuntos com a Casa de Stabellir tornaram-se nefastos e maus.
Datação – Últimos dias de Fevereiro, Norte das Colinas de Forragem, terras dos selvagens de Kor-i-Sûm'Bar.
Arquivo – Pessoal
Segue-se agora o relato de acontecimentos de sonhos e terror, mistérios desvelados e maravilha, como contados por mim, Varyn, Cronista-Mor-e-Primeiro e Agente de Campo da Convocação dos Vários Caminhos, Arquimestre no Conselho e homem há muito vivendo.



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O
 sábio desconfia do libelo de sangue. O sábio é, antes de tudo, cauteloso demais para se colocar sabedor de toda a verdade e precavido o suficiente para não ser ignorante. Assim, por segurança e humildade muito necessárias, pergunta, questiona. Por serenidade e por orgulho, contempla, analisa. É da sorte dos que pensam e no pensar se demoram querer desconfiar até as últimas minúcias antes de declarar confiança de algum tipo.

   Que há mortos que caminham entre os vivos, esta é uma constatação aterradora sobretudo porque é real, e triste. Que alguns deles operam encantos, habitam a espreita sob os espelhos d'água dos lagos, assombram o pó ou gemem incorpóreos além do túmulo, isso também passe por real, pois o que vi não fantasio com o tom da mentira.
   E há os mortos que, para manterem saudáveis as carnes malditas, aguam-nas com o sangue de vivos de um ou outro jeito.

   Acaricia as veias da amante o amador, mas não é o sangue seu objetivo, e sim que seja este sangue mais ligeiro, corando a pele e atiçando a amada. Há, neste caso, a certeza necessária da presença das carnes vivas e amáveis entre a veia e a superfície, por onde passam os dedos dedicados em uma carícia que até as mãos mais rudes e cruéis podem executar se guiadas pelo sentimento sensível das paixões.
   Há, contudo, aquele monstro cuja carícia requer dentes e dispensa as mãos, e ignora a pele rasgando a carne. Um tipo de beijo que exige caminho livre entre a boca e a veia, que dá ao sangue a opção de correr por leito mais ávido e externo que não leve ao coração sempre exigente, mas ao ventre sempre faminto.


   Estava eu em mais uma missão a mando da Convocação dos Vários Caminhos. Era do interesse do Conselho de Guerra que limpássemos o nordeste das Terras Algeíades para que por ali pudessem vir os reforços do sul e do oeste, para que estes encurralassem nas montanhas as tropas que se por ali não fossem detidas, marchariam sobre Fárgia e Corcaresse. Eu há muito já vinha avisando que as turbas inimigas teriam passagem livre para atacar Deltim, em Auglandoc, mas meus avisos vinham sido ignorados desde que a vitória sobre o inimigo avizinhava.

   Os exércitos de Corcaresse e de Nudâmia estavam há mais de meio ano em guerras de vai-e-vem contra as hostes de homens do norte que desciam das terras glaciais portando as bandeiras de seus senhores cruéis. Os reforços mercenários que a Convocação contratou e os guerreiros desconjuntados que eu mesmo reuni nas Terras Algeíades foram de grande ajuda para a campanha de derrota dos invasores. Lutávamos então contra as hostes de Serpo de Uma-Mão e de Vailirendaro, o Infanticida. Os dois haviam feito aliança para tomar as Algeíades e o norte de Nudâmia. Haviam arrasado mais de quinze vilas e trinta aldeias ao longo do longo tempo de campanha. Chegaram a tomar duas cidades, mas foram expulsos quando os reinos ao sul começaram a reunir e enviar tropas para repeli-los.

   Homem sujo e vil, Serpo fora um rico mercador de Fárgia que muito aprendera em suas viagens, homem com o qual eu mesmo conversara muito em tempos idos, quando as estrelas mostravam-se mais alegres nos céus sobre os rios. Mas é dos homens perder a sabedoria muito facilmente quando sua bestialidade é mais bem-alimentada e quista do que sua racionalidade e reflexão, de modo que na altura em que estava eu emerso na campanha de livramento das Algeíades, não mais eu reconhecia o bom mercador com quem um dia conversei. Serpo tornara-se um bárbaro cruel e devoto apenas do frio sem cor e esfaimado do norte. Ele comandava mercenários, corsários de péssima fama e inglória, e em meio a saques de terras antes pacíficas ele perdera uma de suas mãos quando tentou violar uma donzela das Algeíades, anos atrás. Ele nunca esqueceu a ferida, mas aquela menina que o cortou ainda vive, desejando desesperadamente cortar a outra mão para fazer par ao membro que ela decepou quando criança.

   Mas não falarei agora dos feitos desta mulher, que agora anda armada com espada de aço e armadura das Rosas. Falo agora de Vailirendaro, aliado de Serpo na má empreitada de tomar as Terras Algeíades. Este adquirira para si várias alcunhas cuja associação seria insulto mortal para o homem decente em seus feitos. Ele matara seu pai quando criança ainda e deu destino parecido à mãe quando esta voltou da guerra. Sua índole era extremamente cruel desde cedo, talvez desde sempre, se amargasse no útero materno o fel da vida por vir. E nos eventos cercando o ato de nascer é que ele já ganhara a alcunha de infanticida: Viram o ventre materno parir gêmeos, um estrangulado no fio da vida que o ligara à mãe, o outro segurando o cordão do enforcamento sem chorar, como se tivesse sido ele o algoz de tão pequena vida. Vailirendaro nascera já com o assassinato escrito na fronte, e mesmo que do fratricídio precoce fosse inocente, dos que se seguiram não foi: matou cada irmão, bastardo ou não, e não me atrevo a dizer os fins que deu até mesmo às crianças de colo que arrancou dos braços das mães. Ferveu o próprio filho em caldeirão, atirando-o em um quando o julgou fraco, matando também a mãe por acusá-la de ter gasto em vão sua semente.

   Este homem de avérneas ações está marcado para morrer pela mão de um homem justo e inocente, assim profetizo eu ao escrever estas linhas.

   Acontece que em tal momento, quando organizávamos o último assalto contra as hostes de Serpo e Vailirendaro, chegou ao acampamento uma notícia horrível demais para que eu aceitasse que outra verdade triste cumpria-se sem que eu antes tivesse tido visão sobre o acontecimento dela. Estava eu, então, na companhia de Azandre e de Sarão, meus discípulos mais velhos, cuja pouca idade diferia entre um e outro por apenas um ano mal completo. Eles estavam emersos no tempo da guerra, e o primeiro estava frio e resoluto como o aço forjado para a matança, enquanto o outro tremia convulsivo sob sua pele, exigindo a toda hora a carreira e estalar dos músculos para que houvesse ação.

    Por isso eu mandara Sarão para as linhas de frente, com setenta homens mercenários. Não era dele o comando, contudo, pois Sarão é o soldado da linha de frente que enterra a lança ou gira o machado com a boca aberta e o pescoço estendido para melhor sentir o sangue arrancado do inimigo. Azandre é que mostrava os dons do estrategista e do comandante, mas então ele estava comigo no acampamento principal das tropas do fronte. Na tenda maior estivemos ele, eu e os sete generais, buscando liberar aquela região toda do flagelo cruel vindo do norte. Durante toda a reunião Azandre permaneceu calado, mas eu lia em seus pensamentos meticulosos e reservados que ele pensava melhor que muitos dos melhores estrategistas presentes. Em ver que ele não demonstrava toda a sua sabedoria através dos olhos resolutos e que ainda assim ele sobrepujava a muitos homens velhos em sua perspicácia, eu enchi-me de orgulho.

   Acontece que ao fim da reunião voltamos à nossa tenda de campanha, e lá esperava um mensageiro de improvisos: homem assustado mas de passo largo e firme, era um mercador trajando peles e couro e cheirando a gordura e estrada.
“Senhor Varyn, é de urgência que venha comigo, senhor!” Lembro-me eu melhor dos gestos e olhar desesperados e claudicantes do homem do que de suas palavras que apenas tentavam dar cor ao seu tormento “Mana está ferida. Flechada. Envenenada. Morre, senhor, hoje ao anoitecer.”

   A armadura protege bem o homem e não denuncia sua tremedeira do medo, e pouco muda se ele está paralisado em espanto ou terror. Mas foi a mão que deixou cair o florete e a boca que soltou palavras desoladas que denunciou a fenda aberta no espírito de Azandre:
“Minha noiva... Minha noiva morre...”

   E minha quadriga negra partiu veloz em direção a uma tenda cercada por monstros onde uma jovem jazia estirada com uma haste mortal enfeando-lhe o seio branco e fazendo esfriar seu sangue quente.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O Prontuário

"Comece pelo começo."

"Tenho me sentido em vãos, doutora."

"Claustrofobia do pensamento. Mas você tem um ego agorafóbico. Você tem plano de saúde?"

"Nunca fiz planos: Se os faço, não os cumpro."

"Como se sente?"

"O amigo preocupado do meu ego. Preocupado com meu ego, aquele drogado..."

"O que você vê aqui neste cartão?"

O teste foi esse:
"A sílaba tônica do martelo, se eu falo, martelo a minha língua. Se em pensamento, martelo minha mente, e se escrevo, martelo descontente."

Doses diárias de catarse: Recomendação médica. Foi o resultado do diagnóstico. Tenho que desintoxicar. Uma emoção intensa a cada quatro horas.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Um outro trecho

Eu sempre amei aquele jeito como ela se despia ou se vestia. Ela é daquelas mulheres que ficam lindas quando estão vestidas de bagunça. Levantava, jogava aquele blusão de lã sobre o corpo, já estava linda. Ela adorava ficar descalça no chão de madeira, e se saía, saía de sandálias ou com aquelas sapatilhas que deixavam à mostra os pés branquinhos e o cordão trançado de crina de cavalo e couro que ela usava no tornozelo esquerdo.

Tenho e sou agora de uma morena magra e alta, a pele dela é que nem qualquer verso de poema que usa as palavras "cobre" ou "castanho" para elogiar uma beleza mestiça. Tendo sido já devidamente apresentada por escritores essa pele, descrevo mais. O cabelo dela não é liso e castanho que nem o da outra, mas sim aquela juba linda e armada, imponente como uma nuvem teimosa que ficasse dourada porque está entre a testa suave e o sol. O rosto é lindo; colinas africanas onde o viço de uma selva cruza com a simplicidade ostentada da savana. Os olhos, oliva, e o sorriso o leite branco da leoa, mas doce como a carne sem pecados do mamão.

Ela se veste elegante, usa vestidos de poucos tons de uma mesma cor, e se não são de estamparia abstrata, são floridos; e se têm flores ela é um canteiro de terra fértil onde só não germinou vida nas leras de seus braços e pernas e no rosto onde a natureza plantou apenas uma graça nobre.

Só que ainda me marcou mais a minha branquela do tempo em que eu trabalhava perto do porto. Eu saía do meu turno e engolia aquele vento frio e lá estava ela, olhando o mar de cima do trapiche. Ela aparecia junto com o sol, quando começava a manhã. Trazia um café para mim, logo ela já tinha que ir pro trabalho. Pesquisadora.

Sempre que me perguntarem vou dizer que não, negar pra sempre... Mas coração de homem é mesmo vagabundo. É sempre vagabundo. Se alguma vez você perguntar a um homem feito se ele se acha um vagabundo de coração, talvez ele negue. Sabe por quê? Porque ele sabe que é.

Eu estou com quem me sustenta. Ando nutrido com os frutos da terra. Mas degredado eu canto uma canção do exílio volta e meia para aquela violeira do blusão de lã, de cabelo castanho e longo, de sobrancelha grossa, pele branca e de gestos letárgicos. As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas, porque a morena e eu temos as noites de folga só pra folguear, e nossas várzeas têm mais flores porque ela usa vestido florido. Mas me lembro de umas noites onde o céu tinha mais vida, mesmo que estrela pareça coisa quieta, de longe.

Eu estou morando na toca do leão. Eu a chamo a morena de Nemeia. Ela ri porque é mestra em Estudos Mitológicos e Psicologia Arquetípica Jungiana. Ela sabe das coisas melhor que eu, não importa o que. Ao menos parece, porque a mim ela não entende. Por isso ela está comigo. Porque ela não me entende. Enquanto me analisa, me prende. Enquanto me desvenda, me conquista. Se ela olhasse para mim e soubesse o que eu penso, voltaria a ser tranquila e poderia ser solteira.

Ela não entende, na verdade, como eu consegui, destruído, construir uma casa em cima das ruínas do templo grego que eu fui, pelo qual ela se interessa. Bem verdade - nem sou casa nem fui templo; Eu sou é um quarto-sala ou quitinete erguida nas coxas por cima de uma hermida, e só. Mas ela talvez entenda isso, as partes, não compreende é a forma total. Vê o mármore da ruína, vê a argamassa do quartinho, mas não entende a amálgama.

Enquanto eu não falar, ela nunca vai entender.
No tempo em que eu era algo antes de ruína eu bebia libações. Tinha música do violão que ela gostava de tocar no colchão, quase sem roupa, meio estirada sobre aquele blusão de lã, e a gente não rezava, mas vivia de joelhos.

Só que passou o tempo desse meu paganismo e agora eu moro num divã. E não que eu não queira me entender também: Eu me entendo. Me entendi. Me entediei. Talvez por isso eu não queira que a Nemeia me entenda. Me fareje e me estrangule. Não precisa. Não dá. Não vale a análise.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Passagens

Passei algum tempo pensando na Rainha das Estrelas, e por perto sempre esteve a Dama da Terra. E nesse enleio eu também fui elemento consolidado – uma coisa de vento ou memória pairando entre as duas, e entre elas, e talvez também tenha sido um ermo de submundo nos subterrâneos da terra, clamando por vida e cor, ou cujas brechas observavam e queriam a luz fria e branca das estrelas ao longe.

Uma eu vejo nas correntes do céu, entre o cerúleo da lonjura e o branco da distância, e está posta além do alcance mas castiga os olhos.
Outra está posta entre flores e caules, nua, e a casca das árvores é sua pele tão macia por onde o orvalho não escorre - prefere se agarrar e secar a ter de deixar.

Uma está com a vista voltada para a escuridão dos céus além, cada vez mais distantes e vazios. Pensa com a presteza da estrela, e ela é esperança cuja luz ainda vaga depois de morto o coração que irradia.
Outra está sob aves canoras e entre as frutas que amadurecem, e ao seu redor as plantas se enroscam como se fosse normal haver vida. Ela apenas escuta o pólen e sente o gosto da canção, o perfume dos meus toques e observa, na paz de seus olhos fechados, a tranquilidade.

E minhas mãos, estranhas porque sujas de tinta, ora mancham folhas verdes como se quisessem escrever direto na natureza ao invés de se contentarem em descrevê-la, citando montanhas e paz.
E minhas mãos, estranhas porque sujas de tinta e sal, ora escurecem-me a vista quando limpo os olhos, e por um instante tudo o que vejo é preto.

Uma árvore coroada de estrelas. Uma colina orvalhada encimada pelo espelho do firmamento, onde uma nuvem de prata esteja cercada por estrelas. A união de céu e terra é um tanto fugaz, e em nada contentadora.

Estarei sempre eu, um horizonte, cortando ao meio algo que une a terra boa com o ar superior.