quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

::: Tradução de "Wild Nights", de Emily Dickinson

Noites loucas - Noites loucas!
Se eu estivesse contigo
Noites loucas seriam
nossa luxúria!

Fúteis - os ventos -
Para o Coração que atraca -
Dispensa-se a Bússola -
Dispensa-se a Carta!

Remando no Éden -
Ah - o Mar!
Se eu pudesse em ti
Esta noite ancorar!


by me!


(Lovers In The Waves, Edvard Munch, 1896)


Wild nights - Wild nights!
Were I with thee
Wild nights should be
Our luxury!

Futile - the winds -
To a Heart in port -
Done with the Compass -
Done with the Chart!

Rowing in Eden -
Ah - the Sea!
Might I but moor - tonight -
In thee!

by Emily Dickinson

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Mais da Divina Flor, que é Bela




::: Perdi os Meus Fantásticos Castelos

Perdi meus fantásticos castelos 
Como névoa distante que se esfuma... 
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los: 
Quebrei as minhas lanças uma a uma! 

Perdi minhas galeras entre os gelos 
Que se afundaram sobre um mar de bruma... 
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? – 
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma! 

Perdi a minha taça, o meu anel, 
A minha cota de aço, o meu corcel, 
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias... 

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas... 
Sobre o meu coração pesam montanhas... 
Olho assombrada as minhas mãos vazias... 





Falo de Ti às Pedras das Estradas :::

Falo de ti às pedras das estradas, 
E ao sol que é louro como o teu olhar, 
Falo ao rio, que desdobra a faiscar, 
Vestidos de princesas e de fadas; 

Falo às gaivotas de asas desdobradas, 
Lembrando lenços brancos a acenar, 
E aos mastros que apunhalam o luar 
Na solidão das noites consteladas; 

Digo os anseios, os sonhos, os desejos 
Donde a tua alma, tonta de vitória, 
Levanta ao céu a torre dos meus beijos! 

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço, 
Sobre os brocados fúlgidos da glória, 
São astros que me tombam do regaço! 



de Florbela Espanca, na coleção A Mensageira das Violetas

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Dois, Parte VI

Ontem de manhã um de meus pupilos perguntou se o Mito do Labirinto, de Tentanagos, no qual um homem passa horas a fio andando por um labirinto procurando uma saída que ele eventualmente descobre não existir, serve como alegoria para os momentos de alegria. Tal pergunta, cuja reflexão despertada aqui registro, é curiosa: Há labirintos em que nos colocamos nos momentos de tristeza e aflição, dor e medo, e acreditamos que há saída deles. Mas e nos momentos de alegria, de bonança, de prazer? Há labirintos para a mente neste momento também? Discutimos o que Xantaca e Eurextímenes escreveram sobre felicidade e ilusão, mas ao final da aula, ao deitar minha cabeça sobre o travesseiro, eu ainda me perguntava o que o discípulo havia me perguntado. Então sonhei com uma mãe dando a luz, mas a corda da vida que a prendia ao seu filho alongou-se por metros sem fim e a envolveu em um labirinto. Então, no sonho, vi um marinheiro finalmente regressando ao seu lar e à família, mas as ondas crispavam-se em um labirinto de espuma e correnteza. Então vi o gado, gordo e saudável diante da família de camponeses orgulhosos. Os chifres e as ancas dos animais organizaram-se em um labirinto terrível sobre as colinas. Eu recebera em meu sono a resposta conforme os Deuses a sopravam para mim... A tristeza é o caminho curto e reto. O corte da tesoura da parteira, a proa riscando o mar ao deixar o porto, a faca abatendo o boi. A felicidade é o labirinto, sem alegorias. As idas e vindas do parto, a longa viagem para o lar, a espera da vinga do gado. Da alegria, pelo contrário, não há uma maneira de achar saída. Ela nos desorienta e nos faz incapazes de vermos qualquer caminho promissor porque aceitamos que todo e qualquer caminho é tortuoso. Se há um inimigo para a Razão, que cega a mente e a torna incapaz de tomar o caminho mais claro para o entendimento das coisas, eis o seu nome: alegria.

– Estudos de Messireme, Filósofa de Lessara



O
s ventos que trazem são os mesmos que se vão levando embora, com o tempo, algo daquilo que com eles veio. Assim é o ciclo da mudança. Dá-se algo para receber outra coisa. Perde-se aqui para ganhar-se algo adiante. Nunca é certa a noção de falta ou do ser incompleto – se algo faz falta é porque foi preenchido por outra coisa que veio no momento da perda.

   Perde-se um amigo, perde-se um lar, perde-se um bom negócio, perde-se uma chance única... Ganha-se uma longa fila de memórias, ganha-se um rol de avisos que ficam cifrados na carne, ganha-se a cautela sem a qual a vida não segue.

   – Eu estive esperando por tal momento há muito tempo! – ouvi quando diante de mim o vampiro fez-se uma fonte de ódio frio. Mas não fora a criatura má que o havia dito, tampouco Viatra, que estava amarrada e estática em um dos pilares do salão.

   Aos poucos uma sombra imensa tomou conta do chão e da parede do fundo. Alguém entrara por uma das portas principais, por onde há pouco haviam trazido o prefeito de Varuzal. Era um homem encapuzado e munido de espada, sua voz ecoara no silêncio de modo imperioso.
   – Eis que vejo uma face conhecida se aproximando, pisando agora as cinzas de meus inimigos vencidos – disse eu, apertando a lança em minhas mãos – Mas vem o portador de tal face como amigo ou como inimigo?

   – Vem como homem em busca de vingança e em busca de informação.

   A mulher vampiro desceu da cadeira sobre a qual estava em pé e tomou do punhal que usara para abrir as veias do prefeito. Tinha na outra mão o cálice de onde sorvera o sangue. Sua nudez branca como a morte fora manchada por sangue, o que deixava ainda mais selvagem e ameaçadora a sua aparência. A face estava dominada por uma expressão selvagem e terrível que até meus olhos, tão acostumados com as feras, tinham dificuldade em discernir ali algum brilho restante de humanidade.
   – Você, bastardo! – ela vociferou conforme o homem de capuz aproximou-se de nós três – Vim em seu encalço degolando e apunhalando, e eis que quando perco seu rastro nauseabundo é porque estava escondido debaixo de meus pés!

   – Pisou-me porque assim deixei, condessa – disse o recém-chegado, enchendo o ar com a surpresa. Nunca imaginaria eu que aquela criatura vil tinha títulos nobres – Eu estou aqui há dias e mais dias, mais do que você mesma estava. Por meus feitos os refugiados que por aqui passaram tiveram comida, abrigo e alívio. Tudo o que não pude lhes dar foi nova terra e boa esperança. Tudo o mais garanti que Varuzal lhes desse.

   – Porco! Cão chifrudo! Besta linguaruda! Vou voltar para o norte com seu coração nos meus dentes! – e ela pulou sobre o homem como um gato sobre o rato, de modo que nenhum ser humano era capaz. Talvez a falta de decência e de uma alma a deixasse assim mais leve e ágil.

   Mas o recém-chegado não a recebeu como presa surpresa. Atracou-se com ela de modo não menos feroz, e grunhiam e berravam conforme um combate animalesco tomou forma no salão. Atacavam-se com punhais e com a pura força profana de seus braços.
   Fui até Viatra, a enviada da igreja de Selmar, e libertei-a dos nós que a prendiam. A mulher então virou para mim a face vendada, e seu lábios pintados de branco finalmente esboçaram alguma emoção. A fúria.

  – Mataram meus soldados. – e os fogos do salão, apagados quase todos, acenderam-se de pronto – atiraram os livros de Selmar no estrume e no sangue dos porcos! – e as chamas elevaram-se, lambendo as paredes do salão e saltando para fora das lamparinas, archotes, velas e braseiros – depois queimaram cada página do livro sagrado em fogos onde assaram seu alimento sujo! Cada livro de Selmar é uma obra sagrada, um pedaço de Selmar no mundo. E eles profanaram essas relíquias manuscritas após terem vilmente encomendado tantas sob o falso pretexto de divulgar a fé!

   E o grito que ela emitiu foi cheio de dor e revolta, a revolta que os crentes sentem ao verem violadas suas frágeis ideias de verdade. Haviam insultado e atacado o que ela queria inatingível e prístino, e por isso mesmo eu não conseguiria dissuadi-la ou sugerir-lhe o pensamento racional.

   Conforme as chamas no recinto tomaram as formas de asas que esvoaçavam um incêndio pelo salão, os dois nortistas estava digladiando de maneira animal. Já haviam dispensado os punhais, e ela arrancara quase todas as vestes dele. Nacos de carne faltavam nos corpos de ambos, arrancados a mordidas.
   Eu saí do salão envolto em chamas e fumaça branca, deixando para trás Viatra, que parecia um pilar de mármore pintado no centro da sala incendiada. Parecia-se em algo com uma estátua que ornasse um templo saqueado.
   Também deixei para trás a mulher vampiro e seus embustes, perguntando-me porque ela viera em perseguição de tão longe.
   E deixei também Elão de Varraquêz, o vampiro que eu encontrara nas montanhas longe dali numa hora de exterminar bárbaros.

   O prédio queimava em pouco tempo. O fogo da revolta selmarina quebrara as janelas com mais presteza que a de vândalos ensandecidos. Mas esse som foi quase abafado, pois o que exigiu mais de minha audição foram os gritos da mulher vampiro que saíram do prédio e ganharam meus ouvidos:
   – Vieste de longe, cavando um caminho para uma enchente de encardidos! Pastor sujo que guia uma vara de porcos covardes! Seus refugiados morrem agora, e morrerão todos antes que eu mesma morra!

   E eu escutei o som de uma garganta lacerada como se eu estivesse diante da cena que se desenrolara lá dentro. Um último rugido de revolta e ódio também me aterrou o coração, mas era tarde para lamentar.
   Varuzal queimava. Os sinos começaram a soar demasiado tarde porque não haveria mais jeito de contornar a situação.

   Os fogos começaram de praticamente todos os cantos da vila. Os mortos que a mulher vampiro trouxera do túmulo profanado estavam em todas as ruas, quebrando portas e janelas para violar as casas e trazer os cidadãos para as ruas para que lá pudessem ser assassinados. A guarda da cidade fora pega de surpresa por uma imensa horda sem vida, que chegara silenciosa conforme sua senhora ordenara apenas com um único pensamento mal. Só então eu entendia porque a mulher vampiro me encarara durante tanto tempo sem dizer palavra ou fazer ação alguma: estava conferindo ordens para seus mortos escravos enquanto eu ficara tolamente na defensiva.

   Eu poderia ter evitado aquilo. Com meus pensamentos eu poderia ter invadido os dela, e com minha concentração eu poderia ter quebrado a dela. Seus mortos cairiam no chão, sem mentes, e ela estaria sem sua tropilha de amaldiçoados.

   Mas não. Varuzal queimava. Cada casa queimava porque eu não agira rápido. Cada pessoa sangrava a morte porque eu não pensara melhor. Faltara visão para um homem como eu, e essa era uma falta tão grave, julgou o destino, que o preço foi pago por toda uma vila.

   Aqui e ali mais chamas estouravam. Como isso era possível eu não soube tão cedo, pois as criaturas mortas tinham total aversão às chamas e delas escapavam com um resquício de instinto que trouxeram do túmulo. Soube, contudo, que era obra de mão humana mandada e pensante, pois as partes da vila que queimavam eram aquelas que não estavam sob ataque dos mortos. E eu poderia ter evitado aquilo.

   Os portões ardiam e ali havia um obstáculo para a fuga de qualquer um. Eu caminhara quase que sem saber até o portão sul, onde uma multidão considerável havia se encontrado apenas para deparar-se com a porta trancada e em chamas, tornando impossível sua fuga. Haviam trancado a casa mas o assassino já estava escondido dentro do quarto. E eu poderia ter evitado aquilo.

   Os mortos que foram ao seu encontro já os abatiam, incapazes de misericórdia. Estavam entre a lâmina velha e a chama devoradora, e muitos não sabiam escolher seu fim. Ninguém ali lutava pela sua vida, já haviam entregue as almas para o destino de morte. Eu poderia ter evitado aquilo.

   Mas eu não podia falhar com mais gente aquela noite. Não depois de meu erro fatal. Eles haviam perdido casa e sangue, não podiam perder tempo e futuro. E, se eu acredito de vez em quando em tal coisa, não podiam eles perder esperança.
   Com meu comando inenarrável e com o abrir de meus braços envoltos em pano negro, tendo a luz da lua refletida em minha face, os portões em chamas apagaram-se com um sopro frio das alturas em único segundo, e desabaram sobre o fosso seco como ponte de pedra inquebrável.
   Então, enquanto eles fugiam, eu exigi para mim a atenção de todos os filhos da tumba que ali estavam concentrados em matar, e todos desviaram para mim seus olhares vazios e sem cor. Investiram com a última vontade de sua senhora dominando suas mentes vazias.
   E desta vez eu não me fiz invisível para seus olhos ausentes. Eu encontrei cada um com minha lâmina: eu deixara a lança cravada no chão e tomara de minha espada, Altala, e com ela clivei a maré de maldição como se fosse o raio de sol matutino que corta a treva sem resistência escura. Quantos caíram por mim eu não sei narrar, pois dali a pouco todos os mortos que assaltavam a cidade deviam estar atacando a mim, chamados por algum encanto horrível que ainda perdurava em suas mentes violadas.

   Quando tombei de joelhos eu já quase não era mais senhor de minha carne: eu havia perdido meu corpo para o cansaço. Meus tendões ardiam e meus músculos eram tortura. Altala estava presa às minhas mãos, as runas engastadas no ferro brilhavam como brasa. Eu tentei olhar a lua, mas pilhas de cadáveres amaldiçoados barravam-me a visão. Eu havia caído da pilha de inimigos que eu mesmo formara.

   Minha lâmina enfeitiçada mantinha suas formas vis sobre a terra, então eu reuni meu resto de força e embainhei-a. De pronto aquela pilha desfez-se em fumaça horrível e troféus de guerra conforme os mortos perderam suas formas mundanas. Eram só lembrança perturbada novamente.

   Minha face encontrou o calçamento. Eu ouvi passos, mas era mais gente fugindo pela porta do sul, escancarada por mim. Não sabia o que era de Viatra, nem o que era de Elão, nem o que seria de Varuzal. Preocupava-me mais saber como estava meu pupilo Sarão, mas eu estava além da capacidade de conseguir procurá-lo.

   A única força naquele lugar, naquela hora, capaz de me acolher em face à vergonha e a exaustão foi a noite. Mas logo ela ia embora, dando lugar à manhã.

   Naquela rua, com a face colada no chão, depois de um tempo tão longo, eu reencontrei em mim aquela capacidade de salgar o mundo com a alma dos olhos.

   A manhã rompeu pelo céu. Vergonha. A luz do sol me encontrara em pranto.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Dois, Parte V

Pergunta-se aqui e ali, com curiosidade impossível de se esconder, qual é a sina do homem. A resposta, esta eu aprendi ao longo de duros e amargos anos. A sina da gente é parelha ao tortuoso caminho do sofrimento. Somos todos nascidos de dores e sangue deitado, agourando o porvir de cada alma, que conhecerá dores e derramamento de sangue com a mesma certeza que a morte vem. Até que a morte venha, contudo, nos é dado o direito e o tempo para ganharmos glória, para reclamarmos tudo aquilo que é efêmero mas contenta nosso coração, aplacando por algum espaço mínimo de tempo os temores a que se entrega o coração infirme ou aplacando por algum espaço mínimo de tempo os pesares que se abatem sob a mente consciente e desperta. Eu tenho muito, seja o assunto conhecimento de mistérios e fatos da natureza, ou seja o assunto as posses estranhas às quais se apega o homem. Tudo isso tenho muito, e tenho também histórias e relatos das mesmas. Tudo isso porque muito vivi. Tudo isso porque, como todos, nasci de dor e sangue deitado. Porque, como muitos, vivi em meio à dor e ao sangue deitado. Mas porque, como poucos, tenho consciência destes caminhos tortuosos por onde escorre o sangue e por onde a dor caminha mais sôfrega, caminho que todos temos de percorrer até que a dor acabe e o sangue pare. Eu, sozinho tantas vezes nessa percepção, sei da sina do homem e entendo que ela é inescapável de maneira diferente que o simplório, que só a pode sentir sendo cruel. Prego, pois, a visão. Não para escapar do inescapável, mas sentir amenizar os fardos da sina do homem.
– Varyn, Meditações de um Mudador, vol.2



C
ontam os relatos no Livro Selmarino que Selmar, o Homem-Sol, deu sua vida para que a humanidade perdurasse. Sem seu sacrifício o mundo teria sido perdido em uma era de sombra e caos, no tempo em que o mundo era todo um único campo de batalha circundado por um mar de sangue. Mas dizem os crentes que Selmar abriu suas veias no topo do grande Monte Solarrim, no exato momento em que o sol tocava sua crista de pedra. O sangue do homem lavou as terras todas e incendiou-se sob a flama do sol, criando uma enchente que purificou a terra por fogo. Só assim foi possível recomeçar, só assim foi possível para a humanidade povoar uma terra nova. Creem eles que só os que sobreviveram ao dilúvio de fogo de Selmar é que eram dignos de viver, mas que por má arte sobreviveram também outros, o que explicaria todas as levas de gente de tantos reinos e terras diferentes que, tal como eu, não se deixam perturbar pela ladainha dos Selmarinos.

   Mas que a igreja de Selmar tinha muito poder, isso não é prudente negar se o que se almeja é a alcunha de sábio. Através da fé ilógica e do dogma visceral dominavam massas e massas, e essas massas submissas faziam-nos manipular a realeza. Poucas coroas reais têm a vontade de descartar a influência da igreja – seja pela mão de obra que pode recrutar quando desejar, seja pelos fundos de que dispõe, verdadeiros rios de riqueza, ou seja por sua influência prodigiosa através das nações.

   A presença de uma enviada da igreja Selmarina em Varuzal só podia indicar que coisas importantes estavam acontecendo ali. Importantes o suficiente para atrair o olho da igreja. E porque o carroção de Viatra trazia livros sagrados para o povo da igreja, algum acordo de grande importância devia ter sido feito.

   Não foi o que de fato eu vi se desenrolando quando espiei a cena que se abatia sobre o salão do palacete do prefeito de Varuzal, mas isto conto apenas depois de contar como fiz para infiltrar-me em tal local.
   Uma vez que por mim tombaram os misérrimos desalmados que foram atiçados contra mim, vasculhei a área em busca de mais defuntos ambulantes. Nada. Mas aquilo já explicava um pouco dos animais mortos nos arredores da vila: aquelas criaturas nefandas são mantidas vivas por meio do sangue de animais de casco, e isso, somado ao relato que eu obtivera sobre a longa medida de tempo durante a qual várias criações sumiram das casas dos camponeses, permitiu-me concluir que havia uma força de mortos lutadores estocada ali naquela vila. A presença daquelas criaturas sórdidas na terra enchia de temor inexplicável o coração das pessoas, fazia murchar as plantações e deixava o gado louco.
   Quanto a mim, essa presença horrenda trazia inquietação, pois aquelas terras mantinham-se pacíficas apesar da proximidade com as terras da guerra. Por ali passavam tantos refugiados. Teriam estes de ir para ainda mais longe?

   Fui atrás da fonte de tanta sordidez. A raiz desta árvore morta e enegrecida estava dentro do palacete. Passar por uma porta vigiada por seis guardas era um desafio, contudo, que me estimulou demais a imaginação e não me causou nenhum nervoso.
   Mas este era, ainda assim, um desafio. Tomei-o com muita alegria.

   Eu poderia ter me disfarçado aos olhos daquela gente. Passar pelo que eu quisesse. A soldadesca costuma perder o olho bom para o embuste quando é posta plantada na frente da porta e aprende apenas o nome de quem deve saudar. Mas eu não quis me valer da ignorância alheia para atestar alguma perícia. Poderia eu ter passado invisível por entre eles, e pensariam que fora apenas capricho do vento o abrir das grandes portas. Era provável, contudo, que pensassem nesse caso que fosse obra de mau encanto, estando a vila tomada pelo pavor suspeito. Poderia me anunciar, mas ao fazê-lo chamariam seu senhor, que naquela momento poderia estar sendo orientado por Viatra, que sendo da igreja desprezaria a boa vinda dada a um feiticeiro.
   Decidi, sendo bom amigo de alguma lógica, usar outra porta. Outra entrada, melhor dizendo. Uma em que não houvesse porta.

   Fiz-me de amigo confiado das sombras e estas, densas, ludibriadas pela Arte e pelo meu agrado dissimulado, cercaram-me como amantes queridas, como aduladores baratos, como roupas de honraria. Abraçavam-me braços sem luz, odiosos mas sutis, pavorosos em sua frieza e escuridão, mas belos pela simplicidade e ausência da pretensão. Fiz-me, então, denso como a sombra de um fantasma, e deslizei pela área plana e aberta entre mim e o palacete como deslizam os sonhos, as alegrias e as dores diante dos olhos humanos.
   Ao encontrar a parede, esse obstáculo ferrenho de pedra e vontade de longo termo, atravessei-a sem me importar com a intrusão. A sombra guiou-me de um lado da sombra do muro para o outro lado da sombra do prédio, e lá dentro estava eu, nas sombras conjuradas pelos archotes e lâmpadas de óleo.

   O ambiente cheirava a decadência.

   Silencioso o suficiente para pegar desprevenidos os pássaros e para causar inveja a um gato negro, andei pelos corredores como se estivesse em casa de convivas apreciados. Sem esforço deduzi, pela lógica da arquitetura local, conhecida por mim, onde ficava o porão. Fui até lá, e aquela vasta sala cortada por mais paredes tinha adegas e uma dispensa farta, depósitos de material da criadagem e quinquilharias que foram melhor estocadas longe da vista dos que acima faziam boa morada. Meus sentidos de mudador me levaram até a pedra fundamental do casarão, ela estava enterrada sob algumas pedras de piso mas me bastaria estar perto dela mesmo assim.

   Sobre as pedras que encimavam a fundamental, aquela que fora a primeira do palacete, joguei minhas runas engastadas em âmbar e desenhei com a ponta da faca meus glifos de pergunta. A vidência me revelou os segredos todos daquela construção, e dali saí andando pelo palacete como se estivesse em casa minha de tão familiar que se tornaram para mim os corredores e cômodos. Eu talvez soubesse da planta do palacete melhor que aquele que o construiu – e tendo eu mais visão e ousadia que o arquiteto comum, é provável que de fato eu melhor conhecesse, porque a razão aguçada traz mais uso a uma simples janela ou porta do que a mente unifocada daquele que as desenhou e dispôs.

   Porque ao invés de passar pelas portas mais usadas para chegar ao salão principal, fiz meu caminho pelo alto da construção, nas traves do teto. Por ali caminhei com peso reduzido, pois assim o quis, e não fiz ranger a madeira velha. Foi assim que eu pude contemplar a triste cena que mostrava o que era e o que estava para ser de Varuzal.

   Havia um fogo aceso no centro do salão, e ali assavam talhes generosos de carne. Ao redor três mesas foram postas, formando uma sorte de triângulo. Os comensais eram todos gente alta e sinistra, envolta em trapos negros ou marrons, uns vestiam o couro cru e mal curtido, ainda cheirando a sangue, que retiraram de bovinos com as próprias mãos.
   Viatra estava ao fundo, amarrada na altura do pescoço, da cintura e das pernas, com as mãos atadas. Estava estática e muda. Prenderam-na a um dos pilares do salão. Seus guardas não foram poupados, jaziam pendurados em outros pilares, de cabeça para baixo e sem elmos, tendo congeladas nas faces as expressões de uma morte à traição.

   Observei que reinava a maleficência. Abaixo de mim festejavam homens vis de má índole, que se cortavam com suas facas longas apenas pelo prazer da dor e do sangue. Isso para dali a pouco, ainda em meio a risos, talharem a carne mal cozida e comerem-na vorazmente, cuspindo pedaços aqui e ali. Eram homens, a maioria, e faziam daquela casa de governo um prostíbulo forçado ao terem para sua luxúria moças sequestradas dos campos. Não eram meretrizes de gente torpe, eram gente marcada pela lida: mãos calejadas e traços firmes, o cabelo seco pelo sol. Estavam sendo prostitutas forçadas, talvez sob encantos maus de quem sabe algo da Arte e provavelmente por resultado de ameaças tão ruins que só se indica através delas a procedência fatal – o coração do homem.

   A orgia tomava forma enquanto os homens brandiam facas cheias de sangue de amigos, de moças capturadas e de carne de porco e vitela. A cabeça de um suíno, percebi, fora arremessada ensanguentada por sobre uma das mesas, deixando o rastro de sangue para estalar-se aos pés de Viatra, que sob sua venda parecia cega e surda ao que acontecia ali.
   Enquanto uns se cortavam e outros se regalavam com diferentes carnes, vi que sobre todos reinava um espectro mais medonho: uma mulher estava sentada em uma cadeira de alto espaldar, mais alto que os das outras, e ela tinha nas mãos uma taça imensa e vazia, além de um punhal. Ela estava nua, sentada sobre a cabeça de um touro negro, entre os chifres do animal. Bateu a arma na taça e com esse comando dois homens à mesa foram buscar o prefeito.

   Sim, ele estava lá. Se estava ciente do horror, não soube dizer. Quando o trouxeram de seu quarto, mostraram para mim, sem saber, um homem debilitado e desprovido de forças. Sôfrego, ele levou sua palidez até os pés da mulher nua que tinha nas mãos a taça. Jogaram-no, na verdade, e o que ele de imediato fez não foi procurar revolta ou explicação: foi virar-se para cima adorador e estender um braço para sua amada.

   Espero eu que quem me lê seja intuitivo e sagaz o suficiente para deduzir o que aconteceu. Em respeito a este que pensa ligeiro e a esta que sabe que só se é sábio ao usar a sabedoria, dispenso minuciar o triste ocorrido. Após a mulher abrir mais um furo no pulso do prefeito ele, com o que bem poderia ser um último fôlego, declarou a ela seu amor profundo. Enquanto ele balbuciava no limiar das forças de seu peito, ela apenas encheu a taça.

   De longe vi ali naquele rosto pervertido uma sombra terrível. Duas, na verdade. No lugar do clarão de olhos vivos e tenazes de mulher que impera eu vi dois rombos hediondos por onde vazara toda a humanidade. Aquela sombra era familiar: Elão de Varraquêz não fora o único daquela estirpe maldita que eu vira em tão pouco tempo. Lá estava eu diante de um vampiro.

   A criatura nefanda bebeu da taça com avidez, e o que não coube em sua boca já cheia e na garganta já inflamada, deixou cair livre pela face, ensanguentando a seguir o busto e o colo. O sangue do prefeito parou ao pingar do focinho do touro decapitado.

   Foi demais para mim. Eu não suporto esse tipo de decadência. Não havia ali valores, não havia ali decência. Embora eu abnegue os valores do tolo e ria da decência dos medrosos, eu digo que nada é da vida longa do homem sem que ele direcione sua capacidade de pensar para o bem de seu semelhante sempre que possível. Má é a pessoa que tripudia na desgraça alheia. Uma coisa é matar o animal que vai para a mesa, ou dar misericórdia ao moribundo, e é compreensível dar cabo do inimigo que não perdoa ou se detém, e aceitável torna-se a morte de um monstro cruel que ameaça com sua existência. Eis aí de onde derivam os valores que defendo: da verdade. Da constatação, da observação, da compreensão da brutalidade das coisas. Não de dogmas iníquos e de verdades impostas, mas daquela verdade que segue o que é amante da observação e amigo do pensar cuidadoso.
   Desse modo estava eu diante de tamanha depravação que não pude me abster. Se eu tivesse tido menos paciência, teria feito daquele palacete fogueira que queimaria pela noite e seria vista por toda a cidade.

   Com desprazer de ter de fazer o que devia ser feito, pulei do alto do teto e caí sobre o fogo aceso. Já com as palavras certas para conjurar a amizade das chamas, fiz com que a fogueira se excedesse em sua forma e agarrasse com garras de incêndio aquela gente grotesca e animal, pois animal pleno é aquele que abandona sua sabedoria para saciar seus instintos mais básicos. Como assim dispensavam sua sabedoria e razão, queimei-lhes as cabeças, e o cérebro queimado fez incendiar ideias torpes e maus encantos que reinavam sobre aquela terra.
   Mas como eram rudes e frios os seus corações, incapazes de se regozijarem na piedade que se tem da gente trabalhadora e incapazes de se contentarem com a admiração que não destrói ou profana, queimei-lhes também o peito, abrasando aquela frieza horrível. Corações queimados deixaram em brasas e cinzas cálidas as emoções mais vis que pulsam na carne humana.
   E como usavam de seu sopro e sangue apenas para ferir e macular, queimei-lhes sem cerimônia as mãos e os braços, e cada dedo virou uma chama desconhecida para a palma, castiçal. O calor daquelas feridas fez tórridos tantos atos passados de tortura, sortilégio e assassínio que a fumaça que se desprendeu conforme murchavam tantas mãos de gente ruim foi incapaz de ganhar a altura e encarar a noite lá fora, de modo que caiu sobre o chão em mantos negros e sinistros.

   E enquanto os berros retumbavam, senti tantas mentes que escaparam da chama se armando contra a surpresa e contra mim. Tomaram de facas e facões, e em várias línguas armou-se o mau encanto.
   Ai daquele que contra mim desperta a sanha de colocar o feitiço. Torna-se fúria toda a minha paciência e faz-se em ódio minha complacência quando usam contra mim a Arte. Aquela gente baixa falou coisas para murchar meu coração dentro peito, e para que ele parasse, e tentaram roubar meu fôlego, deixando-me oco de ar, e tentaram roubar a fluidez de meus tendões e carne para que eu tombasse seco. Tentaram, os mais audazes, expulsar minha alma de meu corpo para que morto eu caísse de pronto, ou ordenaram que me agarrassem pelo pescoço sombras infernais e que me arrastassem para terras longínquas onde existir dói.

   Mas minha pele é grossa porque sobre ela correu a água de chuvas estrangeiras. Meu pelo agrisalhou sob estrelas desconhecidas para eles. O pó de estradas já esquecidas cobriu-me os poros, e luzes de casas tão distantes me iluminaram também. Toque de gente estranha alcançou-me os nervos em lugar longe dali, e a minha aura cresceu com as canções de pássaros e de mulheres que habitam além das fronteiras percorridas com afinco.
   Não, nada daquele rol de maus desejos ganhou entrada e morada no meu ser. Eu andara demais por muito chão e vivera demais por muita vida para me deixar cair por fim assim, nas mãos de gente baixa e egoísta. Mais uma vez eu estava cercado por nada além da morte, que em sua nudez me estendia a mão. Aquele era novamente um dia de morte, um dia de superação. Mas eu sou senhor de meu destino por razões que em demasia me repito a elencar, de modo que eu faria claro que a morte não viera por mim, e que não seriam aqueles iludidos que me superariam.

   É certo que Varyn é homem, e homem morre. Algum dia morrerei. E nesse dia tal coisa acontecerá porque alguém há de me superar. Mas aquele dia não é tal dia, e esse alguém não estava ali entre aquela gente.
   Eu vivi porque nada me dobrou a vontade. Fiquei incólume diante daquela vileza baixa e ignorante. Aquela falsa, pretensa sabedoria era mesquinha demais para entender a Arte como eu sou capaz. E a Arte, ultrajada, obedeceu meus comandos para livrar mais uma terra de gente que faz mal uso dos dons da mente e da obstinação: eu chamei os nomes de ventos ancestrais da respiração humana e na minha mão que não portava a lança eu agarrei as correias de relâmpagos e uma trança dos céus. Abri os dedos e por entre eles eu vi escorrer a luz das nuvens mais negras, e calei os gritos com o estampido do trovão. O raio solitário estalou pelo salão, conquistando carne e voz como conquista a luz mais humilde a vasta habitação da sombra.

   E quando tudo enfim quedou silencioso, e quando as camponesas pisaram fugidas as pilhas de cinza de má gente, eu estava em um salão quase deserto. Restaram ali, para o diálogo sem paz, um vampiro depravado e cruel vindo do norte, Viatra, ainda aprisionada, mas em pensamentos plenamente atenta a mim, e eu, que estava de pé no centro do salão, cercado por um notável anel de cinzas, onde se misturavam as cinzas da fogueira inocente que se apagara, as cinzas das maledicências das quais eu me recusara a ser vítima e as cinzas de meus inimigos.

   A mulher, nua e pavorosa em sua crueldade, encarava-me com maldade e fúria. Seus olhos desalmados eram presas geladas procurando meu coração.

   A primeira palavra ali desferida, contudo, não foi de nenhum dos três.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Dois, Parte IV

Li nos livros da biblioteca de meu defunto marido que os ventos daqui do norte, vindos do norte do norte, são de procedência gélida; ares que se desprendem de banquisas que jamais desgelarão. Esses ventos seguem para o sul, mas antes que possam ir além, param nas grandes montanhas e espalham-se pelos vales boreais. Mas são histórias de homens frouxos, falsos eruditos efeminados e relatos de gente tola e covarde. Creio no que li nos velinos dos sábios do próprio norte, que escreveram a tinta negra na pele escalpelada de seus inimigos e na pele de parentes idosos por eles salvos de morrerem de velhice. Nessas peles os sábios relataram que o vento norte é a respiração de uma besta fria que está posta empoleirada no norte do mundo, aguardando o momento em que acordará de seu ninho frio e cinzento para devorar toda a carne e beber todo o sangue quente que há no mundo. O norte não é uma terra para fracos, nem aqui se cria gente piedosa e temerária. Somos todos transidos pelo hálito da besta do frio que aqui jaz, e para enfrentá-la temos de ser bestas mais selvagens na essência, e muitos mais viciosos no ataque. Não poupem mais nenhuma aldeia. Derrubem as casas sem fogo, despelem os líderes e deixem os aldeões nus pendurados em mastros. Serão nossa isca para despertar a besta pela fome: Se seus gritos não forem levados até ela pelo vento, suas peles e lágrimas serão.
– Carta de Ladabel, Senhora, para seus comandantes na campanha em Quartalonge



A
quilo que habita o beco escuro é amante do silêncio e da noite, mau-amigo do sol e da claridade. Por vezes há nas sombras um bandido ou um malfeitor, um perigo e um mal, mas de quando em quando as sombras são também apenas meros asilos para almas que, se postas sob a evidência da luz, sentem-se mais pesadas por recordarem fardos pesados, mais extenuadas por reencontrarem casos extenuantes.

   Sou, ainda que eu o diga sob a luz das velas, uma destas almas. Perdi tantas pessoas que um dia me foram caras que ver o raio do sol incidir sobre a cidade, revelando-me a visão de gente que anda por ruas pavimentadas por entre prédios mais cheios de gente, traz-me inquietação e profundo pesar.

   Movo-me mais depressa sob a luz do luar. A noite torna-me mais célere no passo sobre o chão e no pensamento que se desvencilha da memória pesarosa. As estrelas e a lua são-me mais amigas porque me permitem contemplá-las com uma paciência e humildade que a arrogância cegante e invariável do sol não permite. E se sob a luz dos luminares frios da noite revela-se a vileza de atos de banditismo e depravação, sob a luz do sol revela-se a feiura da carne e da pedra de maneira muito mais tácita: porque atos podem ser perdoados por quem não os perpetrou, repensados em arrependimento pelo perpetrador; mas a feiura fatídica que o sol evidencia à atenção está aquém de perdão ou arrependimento. O roubo executado sob a proteção das sombras pode um dia ser reparado ou ter sido o último. A cicatriz horrenda na face daquela pessoa e sua mesquinhez habitual serão muito mais vistas quando o galo for ouvido por todos cantando.

   Por isso choca-me pouco, e menos, ver a face da maldade revelando-se noturna. Quando eu estava posto no ato de andar depressa nas ruas de Varuzal, pouco me surpreendeu que em um lugar assolado por medo e maldade, como aquele estava sendo, me chamassem de pronto, para a rendição, três rufiões que andavam pela rua à cata de vítima fácil.

   Mas nunca, em minha vida, fui vítima. Cortaria a língua de quem assim me ofendesse. Dispensei os homens com um gesto de ignorância quanto às suas intenções, mas fazer-se de desentendido em nada os dissuadiu. Puseram-se a seguir-me com renovado interesse, pois não viam simplesmente uma vítima, mas uma vítima fujona. Em sua lógica, provavelmente eu era um covarde que não se via em condições de enfrentá-los.

   Cercaram-me, pois assim eu deixei. Não sei antes tê-los cansado um tanto. Meu passo ligeiro forçara-os à corrida, de modo que o mais corpulento estava até resfolegante. Só um usava a cabeça descoberta, sem medo das autoridades que por ali não pareciam fazer ronda interna. Os demais usavam capuz para ocultar as faces. Com tantos vigias no muro, deduzi que a guarda que fazia a vigilância das ruas devia estar drasticamente reduzida, dando àquela laia de oportunistas maiores chances de fazer roubos e cometer outras barbaridades.

   – Você demorou a parar, rato fujão! – disse o da face revelada. Ele chegou tão perto de mim que pude sentir seu hálito tomado pelo cheiro da fome. – Quando eu quero que alguém fique parado, esse alguém fica parado! – e ele pousou a mão sobre meu ombro de modo ameaçador. Creio que com tal gesto ele pensava me intimidar. Talvez eu estivesse diante de um ladrão por ocasião ou novato nos ramos da vileza.

   – Podes parar a lua em seu trajeto pelos céus? – Era eu indicando com o dedo o brilho de prata crescente pendurado alto no céu. – Se pedires, ela parará? Caso o consigas, rogo-lhe que assim o faça. Muito me alegraria a presença da noite alongada. Chorarei quando vier o sol.

   O homem olhou para cima conforme eu indicara. Sua garganta ficara exposta para mim de modo quase infantil de tão inocente e descuidado, mas eu nada fiz contra sua pele.
   Quando enterrou seus olhos de novo nos meus, ainda havia um resquício de expressão confusa ali, apenas para dar lugar à face que quer se impor ameaçadora e imperiosa:
   – Esvazie seus bolsos ou esvaziamos suas veias. Tire as botas e deixe seu manto aqui. Entregue-me tudo o que você tem de valor!

  Eu ri, e sabia eu que meu riso confiante os deixaria apreensivos e confusos.
   – Sinto muito, senhor, mas o que tenho de mais valioso comigo não caberia em suas mãos, se fosse de medida palpável. Teria de caber em sua mente, mas ela não suportaria tamanho fardo. Se para entregar-lhe minhas maiores e mais caras preciosidades eu tivesse de falar-lhe todas, suas orelhas cairiam esfoladas antes que eu pudesse chegar na metade. Se pudesse colocar meus maiores tesouros em uma saca, esta teria de ser costurada com a pele de todos os animais de rebanho que há no mundo. Não, meu senhor. Não lhe entrego meus tesouros porque simplesmente não sou capaz de passá-los ao senhor.

   O homem mostrou nova confusão, mas novamente deixou a face contorcer-se em ameaça:
  – Verme sujo! Cão sem juízo! – E empurrou-me com sua força maior. Mas eu, antes de cair no chão, virei-me para as lajotas, empurrei-as e levei o queixo do homem para as alturas conforme meus pés subiram pelos ares até descrever um arco e colocarem-me de pé a alguns passos atrás do lugar que eu antes ocupara. Fui tão rápido que os outros dois só tiraram as facas do cinto quando eu mesmo já havia feito de meu cajado de viagem novamente uma lança, e desarmei-os com um único meneio da arma.

   – Invistam contra mim e terão quatro corações ao invés de dois, pois os cortarei ao meio! – disse com a lança em riste. Nada mais lhes foi dito que ouvissem, pois desataram a correr para longe de mim.

   “Narras com prazer tais palavras” – Diz-me a caveira falante que me é testemunha dos relatos escritos. Não nego a ela a veracidade de sua constatação.

   O outro homem eu preguei no chão com a ponta de minha lança. Atravessei-lhe o ombro, mas com um comando de silêncio sufocara-lhe um grito que chamaria muita atenção.
  – Escuta, homem, que em troca de deixá-lo vivo quero ajuda.

   – Fala, pois, maldito, e livra-me da dor!

   – A dor fica até que bem tenhas me servido. Escuta, por onde chego ao palacete onde dorme o prefeito e sua esposa? Tenho urgência em lá estar.

   – Aqui, venha, indico o caminho!

   O bandido e eu seguimos por uma série de ruas. Ora largas ora estreitas, ora enluaradas ora escuras. Estancara-lhe o sangramento com golpes em suas veias, mas eu o empurrava com a ponta da lança. Mostrou-se ligeiro, contudo, e guiou-me sem truques. Era forte e bravateiro, ousado, o bandido, mas pouco capaz de ser astuto. Se não fosse eu, certamente outro seria um dia sua ruína.
   Por fim ele parou, e mostrou com o braço bom, se bem que com careta e gemido de dor, a sombra larga, baixa e comprida do palacete da vila. Ali estava o prefeito, certamente.
   – Agora, infeliz, que eu o veja correndo para longe a todo passo. Se te vejo atiro minha lança e não erro, pois se eu quisesse acertava um morcego em pleno voo. Vai!

   Deixei o rufião partir, e naquele momento soube que minha piedade era quase em vão. A morte daquele homem estava próxima. Muito próxima. Eu estava cercado. Ele não passaria pelos que me emboscaram.

   De fato, dali a pouco ouvi passos lentos e pesados. Das sombras dos becos às minhas costas vi produzirem-se rostos níveos, se bem que escurecidos pela luz faltante. Braços cinzentos estenderam-se para mim, convidando para o conhecimento de facas tão largas e longas quanto cutelos, mas com pontas sinistras. Não eram ferramentas ou armas que se usaria em Fárgia, nem em nenhum reino vizinho. Eram armas de épocas idas, muito antigas, quando ainda não havia reis nem cidades de pedra naquelas terras.

   – Vejo armas do povo de pele toda branca e cabelo todo negro sendo estendidas em minha direção. Relíquias dos tempos em que os homens moravam apenas nas ruínas deixadas pelas civilizações passadas, incapazes de erguer muros. Toda a ignorância que tinham para fazer coisas belas e protetoras está posta na forma de malícia e mau intento no ato de forjar essas lâminas sanguinárias que trazem. De que túmulos terão saqueado elas?

   E ao olhar mais atentamente para os que saíam das sombras, eu fiz mais uma pergunta:
   – E de que túmulos terão saído vocês mesmos, miseráveis desalmados?

   Filhos da morte estavam diante de mim. Paridos de tumbas profanadas, aqueles corpos de falsa carne estavam armados e mascarados, apontando para mim suas lâminas. Sua pele era cinza, parente próxima do preto retinto. Eram fortes como soldados e denotavam a perícia dos mesmos ao brandir suas armas e assumir em absoluto silêncio posturas de ataque e alerta.
   – Miseráveis! Seus olhos vazios não podem achar um Arquimago. Suas mentes vazias, podres e estioladas não podem achar o gênio! – e com minha Arte sumi de suas vistas precárias e deterioradas. Envolveu-me a treva da noite em um abraço frio e sem cor, deixando-me livre das vistas deploráveis daqueles mortos perturbados.

   Desprovidos da capacidade de me enxergar, desci sobre eles minha lança. Armas comuns teriam apenas marcado suas peles geladas ou cortado falsa carne para deitar sangue escuro e pisado. Mas eu não portava armas ordinárias, e há desde sempre em minha lança mais encantos do que há em salões de reis e livros antigos. Cada golpe clivava a carne amaldiçoada como se o golpe fosse dado contra o veio d’água. Fumaça escura com o cheiro da podridão subia pelo ar conforme trapos imundos caíam vazios no chão, encimados por máscaras sem expressão e armas pesadas de aparência cruel.
   Ainda com o manto de noite, aproximei-me do palacete. Mesmo antes de ser assaltado pelos mortos vivos eu vira que aquele lugar estava tomado pela mais torpe coleção de feitiços e encantos maléficos. Ali dentro havia maldade capaz de sortilégios poderosos.

   É verdade que muito da Arte é governada pela Convocação dos Vários Caminhos, mas há aqueles que, em sua ignorância, evitam nosso olhar e proteção. São da sorte de iludidos e coitados que se creem além do alcance de nossas mãos, capazes de se oporem a nós. Certamente era gente dessa laia baixa que estava lá dentro do palácio. Acreditava que deviam ser vários, pois controlar os mortos já não era mais trabalho de uma só mente.
   Porém eu também me perguntava o que era de Viatra, a enviada da igreja. Ela jamais dividiria teto com gente que chama mortos de seus túmulos para que matem os vivos, pois também pela igreja de Selmar é proibida tal arte má. Uma coisa é mexer com ossos inanimados, outra completamente diferente é perturbar para o assassínio os vestígios do espírito e da identidade de um morto, que merecem toda a paz do esquecimento.


   O que acontecera com Viatra, contudo, estava prestes a ser fato conhecido por mim. A noite estava chegando ao fim, mas o céu continuaria escuro sobre Varuzal. Sombras de grande poder estava estendendo-se sobre as terras com mais potência do que até mesmo eu poderia supor.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica II, parte III

PARA QUEM NÃO CONHECE OU NÃO MAIS RECORDA

Crônica Um
parte 1 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/05/as-rosas-e-o-punhal.html
parte 2 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/06/as-rosas-e-o-punhal-i-parte-ii.html
parte 3 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/06/as-rosas-e-o-punhal-i-parte-iii.html
parte 4 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/06/as-rosas-e-o-punhal-cronica-i-parte-iv.html
parte 5 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/07/as-rosas-e-o-punhal-cronica-i-parte-v.html

Crônica Dois
parte 1 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/07/as-rosas-e-o-punhal-cronica-dois.html
parte 2 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/08/as-rosas-e-o-punhal-cronica-ii-parte-ii.html





AGORA, propriamente introduzida através da recordação, a PARTE TECEIRA da CRÔNICA SEGUNDA.

*
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*

Sei de gente que se despe durante a noite. Não das vestes nem de aparatos que agradem a vista ou sejam úteis à utilidade. Não. Sei de gente que se despe de caráter e moral, vergonha e retidão. Gente que anda pelas ruas nua de vergonha e despida de decência qualquer. Dessa gente tenho medo mais do que temo as criaturas que vagam no Norte em sombras, e as evito mais do que evito a estrada quieta onde se viu o ladrão, mais do que evito a fossa imunda onde apodrece o leproso. Não. Essa gente que é nua de moral me assusta mais do que o assalto e a peste, pois sua indecência é mais contagiosa e mais violenta do que as mazelas que se vê na cidade e no caminho.
– Azandre, diário de confissões

S
ei de um guarda de Varuzal que não fez bem seus serviços. Ele dormiu em sua guarita, e por estar em uma guarita devia estar acordado vigiando com cautela, pois certamente esta era a ordem dada a todos os vigias naquela noite soturna e assombrada por medos. Mas achara-o dormindo Sarão, meu pupilo, que apesar de estar menos capaz do que ficaria na lua cheia ou próximo a ela, foi certeiro no faro e na audição.
   Uma vez que achamos um vigia dormindo, entramos saltando o muro da vila: Sarão tinha as capacidades boas para as proezas do corpo, mesmo sendo demasiado magro. Aquele muro patético servia muito mais para dissuadir preguiçosos e impedir a livre circulação de animais do que para barrar uma tropa obstinada que se mostrasse perigosa em invasão.
   Eu saltei a distância necessária usando de minha vontade, que se esticava mais do que qualquer tendão de meu corpo. Fiz-me leve como um pensamento distraído e com o esforço mínimo de meus pés, projetei-me por sobre o muro. Conjurara eu sombras insuspeitas que ocultaram nosso pulo para dentro da vila cautelosa.
   Se o guarda percebeu-nos pelo barulho, reagiu apenas nos sonhos. Não se pôs alerta, muito menos acordado. Continuou em seu sono mais seguro porque dentro da guarita.
   Dali, ganhamos as ruas com grande silêncio, mas vimos que em muitas casas ainda havia luz acesa. À distância vimos a casa do senhor da vila no alto de uma elevação da qual se podia certamente observar todas as casas e os limites do muro circundante. Certamente fora para lá que se encaminhara Viatra, a enviada da Igreja de Selmar.
   – Agora esperamos amanhecer para descobrir o que está acontecendo? – era Sarão presumindo coisas na noite alta.

   – Vamos agora mesmo procurar uma estalagem ou espelunca que nos revele por meio de bêbados, notívagos e meretrizes o que está acontecendo aqui na região. – e divertiu-me na minha seriedade contrariá-lo porque eu era seu mestre.

   Sem objeções, e talvez animado por irmos atrás de uma estalagem, Sarão me seguiu pelas ruas amplas e quietas, calçadas com lajotas velhas que deixavam passar grama aqui e ali. Varuzal era simples e pequena, mas rica e jeitosa se comparada à maioria das vilas da região. Não havia choça de palha e madeira ruim, apenas casas de bom material e pintadas com jeito, com jardins bem cuidados e dando de fronte para ruas limpas e mantidas trafegáveis com zelo.

   Enfim encontramos uma hospedaria naquela teia de ruas. Receberam-nos bem o dono do estabelecimento e seu filho, um jovem calado de boas feições.
   – Chegaram tarde em uma terra de gente que acorda cedo – Disse-nos o homem cujo nome nunca vim a conhecer.

   – A vila parece estranhamente quieta e inóspita esta noite – Disse-lhe eu, sendo direto. Vi nos olhos do sujeito que ser inciso não levantaria suspeitas. Escondera eu a minha lança, disfarçando-a de mero cajado de viagem para o olho destreinado. Sobre os trajes que poderiam indicar meu vínculo com a Convocação, vesti uma grande capa de viagem. Desse modo estava indiscernível dentre viajantes ordinários.

   – Acontecimentos estranhos têm assolado a região. É bom ser precavido. – E com esta informação que praticamente nada informa, o homem deu-se por bom respondedor. Ele anotou nossos nomes falsos em uma tábua de controles e deu-nos as chaves de nosso quarto.

   Mas tão logo Sarão ajeitou-se para dormir, eu saí dali para procurar gente de quem eu pudesse conseguir mais palavras. Perto dali havia, de fato, uma taverna singela e pequena. Estava quase deserta, mas havia um par de bêbados cantando sua alegria de madrugada e dois homens sentados à bancada onde a dona do estabelecimento, uma mulher alta e grisalha, estava bebericando vinho.
   Aproximando-me deles, saudei-os, mas não obtive nada em troca senão olhares desinteressados. A mulher serviu-me vinho automaticamente, e vi que em seus gestos duros estava a marca da repetição de movimentos que marcaram seu corpo durante décadas.
   Não neguei a bebida, embora eu não a tenha provado. Logo pus-me a conversar com os homens calados, os dois de considerável idade. Um era aleijado de um braço, ou outro estava quase cego. Ambos cheiravam ao curtume onde trabalhavam por um salário de piedade.

   Com meus dons, guio uma conversa para o lado que me convém. Sou, no falar, capaz de domar um discurso – touro bravio – e fazê-lo jungido para melhor me servir. Mas falar com aqueles dois pobres coitados era querer domar uma mula velha, de modo que não demorou nada até que eu já estivesse tirando deles o que podia me servir de informação.
   – Tudo começou quando o prefeito casou com aquela bruxa vadia que veio do norte! – disse o meio-cego, que tal como o aleijado estava já sorridente pela soltura que o vinho ruim conferia.

   Cantavam, a esta altura, os dois bêbados na mesa que estava atrás de nós, posta na rua, sob um telheiro simples para aparar uma chuva hipotética que se armava sobre Varuzal. Aviso que, em se tratando de gente vulgar e tendo eu o compromisso com a verossimilhança, aparecerá em minha escrita um rol de palavras e expressões de vil origem e asqueroso emprego.

   – Sim, uma rainha de malefícios, é o que ela é. Uma criança a insultou no cortejo para a igreja. Foi encontrada morta no fim do dia, caiu de um muro e quebrou o pescoço.

   – E desde então, só pragas têm sobrevindo a isso. – neste momento eu desviei meu olhar para perscrutar a mulher que nos servia. Ela estava muito nervosa no ato de limpar copos secos como se esperasse receber um batalhão para beber de seu vinho.

   – É verdade o que dizem estes homens, boa senhora, ou acaso fazem eles troça com as crendices de um viajante?

   A mulher limitou-se a olhar-me por uma fração de segundo, apenas para desviar os olhos para os fanfarrões ao meu lado. Seu silêncio disse-me que ela queria não acreditar, mas falhava se lembrava do assunto.
   – Ela está lá, aquecendo a cama do prefeito! – disse o aleijado – ela deve estar fazendo dele uma mula de carga, um cãozinho de estimação! Roubou-lhe o juízo, rouba-lhe o pau e há de roubar-lhe a vila!

   – Como essa mulher chegou aqui e o que tem ela a ver com essa situação para fora dos portões? – eu nem precisava mais olhar para aquele par de tolos cujas mentes já estavam por mim dominadas. Eu apenas sugeria o comando e eles me entregavam as palavras que eu queria.

   – Ela veio do norte, mas ao contrário dos outros animais que chegam em levas pequenas ou em grupos de quatro e cinco, ela veio sozinha. Como uma mulher jovem como ela pode ter descido do norte até aqui com apenas alguns rasgões nas vestes?

   – É bruxa, nascida no sábado, tem sob a pele demônios que conjuram artes no palacete agora! Não demorará para que o mal que a seguiu entre também na cidade. Os camponeses que por aqui vêm queixam-se a todo momento de que matam suas criações, sequestram suas famílias e de que puseram suas plantações sob maldições de murcha.

   – E o que seu prefeito tem feito para aliviar os sofrimentos dos camponeses?

   – Tudo o que ele tem feito é foder com aquela bruxa dentro do palacete. Há dias que ninguém o vê. Da última vez que foi visto, estava desfilando diante da igreja com aquela prostituta do norte. Ela estava montada em um cavalo e ele, idiota, a pé, puxando o animal pela rédea.

   – E você, senhora, que continua calada. O que tem a dizer sobre essa mulher de tão grande e má fama? – disse eu, dirigindo-me de novo à dona da taverna. Mais uma vez apenas o silêncio nervoso dela me respondeu, mas talvez tomasse-me ela por um mexeriqueiro disposto apenas aos boatos baratos da gente chinfrim. Esse julgamento que ela poderia estar fazendo de mim tirou-me a paciência, no que a agarrei pela face e penetrei os olhos dela com o meu olhar.

   Passei assim uma barreira que ela havia posto em seu pensamento, mas afastar essa barreira foi como abrir uma cortina leve e frugal para mim, e o seria igualmente fácil para quem não têm, como eu, os dons da Arte. Uma mente em dúvida é uma mente aberta, facilmente cercada por todos os lados. É um exército de vasto número de lanças, mas munido de poucos escudos.
   – Mulher, pergunto-te eu o que sabes sobre essa esposa do prefeito.

   Meu olhar, que teria sido aterrador para ela se não estivesse sob o efeito de minha dominação, forçou-lhe a narrativa, que foi feita com voz assustada e rouca:
   – Não quero acreditar que uma bruxa está nesta vila. A avó de minha avó nasceu aqui, e desde então minha família tem feito de Varuzal sua casa. Selmar morreu prometendo que não estaríamos sós na escuridão, mas eu tenho medo. Eu não consigo acreditar em sua promessa iluminada! Não quero acreditar que há uma bruxa aqui, casada com nosso prefeito! Se um homem devoto de Selmar e ungido por seu fogo foi vítima de tais coisas, que podem os humildes seguidores do Homem-Sol contra a vilania dos demônios?

   Eu soltei-lhe a cabeça, de onde despencavam lágrimas. Ela ficaria em alguns segundos de torpor seguidos por forte amnésia, e provavelmente algum sentimento profundo de medo e desespero, estes nutridos por ela mesma, mas sem chance de vazão.
   Fui-me, e de mim só ficaram ali algumas moedas de ferro. Deixei a taverna com novo destino, precisava averiguar a história dessa bruxa vinda do norte e das pragas postas no campo.


   “Mas é noite, cronista, e é perigoso confrontar a suspeita da feitiçaria durante a noite!” dirão aqueles que se esquecem que o que ocorria então era o desejo de encontro de um feiticeiro com uma suposta feiticeira.
   Mas na noite, de fato, há mais perigo. Há caras que se mostram sob a luz mais condescendente do luar que jamais se aventurariam à exposição sob o olhar lancinante do sol.

   Como as faces que eu estava a ponto de encontrar, inclusive.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

::: I dwell in Possibility, de Emily Dickinson - "Minha Morada é na Possibilidade"

I dwell in Possibility –
A fairer House than Prose –
More numerous of Windows –
Superior – for Doors –

Of Chambers as the Cedars –
Impregnable of eye –
And for an everlasting Roof
The Gambrels of the Sky –

Of Visitors – the fairest –
For Occupation – This –
The spreading wide my narrow Hands
To gather Paradise –






Minha morada é na Possibilidade –
e minha casa é mais bela do que a Prosa –
Possui mais janelas do que ela –
E também número maior de portas –

Quartos, tantos quanto os Cedros –
Não se invade com o olhar –
E por um teto perene –
Tem as Mansardas do Céu –

Visitantes – são os melhores –
Por Ocupação - Esta –
Jogar ao alto minhas Mãos estreitas
Para recolher o Paraíso –

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

::: Ânimo da Tempestade (parte dois)

Aconteceu que no décimo dia de chuva intensa, vindo ela quase sempre no meio ou no fim da tarde, Jofric adormecera sobre suas penas retintas e escritos empilhados. Como conseguira, não o sabia – estava naquela consciência morfética que antecede o sono profundo – pois o batente da janela do quarto ao lado batia violentamente, sendo espancado pelo vento que ululava.

                E essas ululações do vento, a ferocidade com que os trovões rasgavam o céu e a cinética audível da chuva não montavam a boa cama para cochilar. E, com o agravo da janela que batia e das músicas que se misturavam nas ruas da vila, formando um eco confuso que era abafado pela tempestade, tornava-se ainda mais inviável perder-se nas sombras confortáveis das pálpebras fechadas, unindo as vistas em um sono bem-vindo.

                Até porque Jofric, convenhamos, não sabia o que era se cansar. Vivia de sua herança farta e da plantação de tabaco administrada pelo seu único primo honesto, mas longe dali. Ele dedicava os dias a dormir até o adiantado das horas, à escrita inspirada e ao namoro arrastado com a carola Margarite. Assim, dormir daquele jeito, naquelas condições que muito seriam dormíveis para o homem estafado, para ele anunciaram (na sua consciência semi-desperta) um acaso intrigante.

                Dormia, e o frio entrava pelas frestas da janela com uma capacidade incrível. Tomava-lhe as fibras e as enrijecia, sua pele tornando-se sutil como a de uma estátua. E aquele frio que o assaltava não foi nada se comparado ao assomo de espanto que lhe tomou a alma quando um golpe de tufão escancarou-lhe as janelas a despeito da tranca.

                E de tal modo estava frio e entorpecido que não moveu mais que os músculos que o levaram a pular dentro de sua própria pele. O sobressalto teria sido melhor expressado se não fosse aquela letargia cética.

                E o vento que tomou seu quarto levou-o por alturas inimagináveis, arrancando-o de dentro da pensão, levando-o pelo céu, jogando-o com violência aliviada somente pela ausência de limites com os quais se chocar, não havendo estes na quinta celestial.

                Ele voava como um pano atirado ao vendaval, ou, bem dizer, um lenço perdido para o vento. Seus olhos, então despertos, viam a vila muito abaixo, aquela mancha de telhados no meio do campo verde e vasto, cruzado como teia de aranha pelas picadas que levavam às fazendas e chácaras e quintas. A chuva parecia vir por todos os lados, fustigando-lhe até a alma, encharcando-lhe o corpo gelado.

                A tal altura, e em tal altura, estava já tomado pelo pavor. Seu pensamento era o medo, sua voz era a gritaria, seu sangue era o frio. Mas o pensamento era chacoalhado, sua voz era abafada e seu sangue se arrastava. Ele mexia os membros no ar, mas era inútil. Gritava, e mesmo assim pouco do que falava ouvia. Entregou-se logo à sua sorte, pois não era homem de luta mesmo. Foi quando veio aquela calma única, prêmio de um grande desespero, que ele começou a escutar naquela ventania uma música estranha e distante, perdida entre as lamentações do vendaval.

                De início agarrou-se ao som como se fosse luz diáfana no fim do túnel escuro, ou mão estranha que apresentasse ajuda à borda do precipício. Mas logo pensou que aquela música era o asilo de gente que se abrigava por baixo de telhados, não sinal de presença amiga de gente que voava pelos ares. Só que tão logo quanto essa esperança musicada se desfez, rapidamente ela voltou-lhe ao ser.

                Porque a orquestra – e era uma orquestra – tornou-se cada vez mais próxima. Sua música era cada vez mais intensa, um compasso cada vez mais ligeiro de movimentos vigorosos e audíveis, potentes e bravios, fortes e indeléveis. Mas a esta altura também as nuvens que se agitavam, panos molhados que torcidos pelo vento despejavam chuva, nublavam-lhe a visão. O som da orquestra rodopiava ao redor de sua cabeça, e por vezes ouviu o clarinete ou a tuba soprando ao lado de um ouvido. Quando bateram pratos, sentiu que foi diante dele mesmo, e viu um vulto negro riscando sua vista.

                Começou então um movimento mais sutil, embora em nada longe de ser violento e possante. Com isso também veio certa calma no vento, certa falta de agitação nas nuvens e certa complacência dos trovões. Isso permitiu a Jofric perceber o tamanho do espetáculo.

                Entre os volteios do vento arredio, rodopiando pelo ar puro e gélido como se pertencessem a tal ambiente tão bem como as gentes pertencem ao andar no chão, uma grande orquestra ali estava, encerrando no ar mais um movimento sinfônico. Vários flautistas, violinistas, tocadores de violoncelo e percursionistas, metais e virtuosos, todos agitados pelo vento, perfeitamente alinhados em suas vestes esvoaçantes, tendo em mãos seus instrumentos musicais. Executavam com talento em meio aquele vendaval uma melodia vigorosa, animada.

                Jofric via todos com estonteio, cada face mais humana do que a outra, mas branca demais para se supor comum, de modo que a vista já confirmava com mil vezes de certeza a gelidez daquelas carnes. Então duas sombras sutis ergueram-se sobre todos no momento que os sons tornaram-se mais fortes – o escritor voador viu que eram sombras de braços, dos dois braços do maestro, suas longas mangas, a farda imperiosa e negra, seu olhar ameaçador, o riso mordaz e o porte altivo – e na ponta de uma das mãos, a batuta de comando.

                Descida a batuta na imitação do meneio do carrasco, raios abriram as nuvens e despejaram luz aterradora, mil vezes mais aterradora do que a sombra, sobre as orquestra, iluminando-a, e róis de músicos começaram a agitação de tímpanos e um riscar das cordas de vários violinos que colocaram os nervos de Jofric e as cristas das nuvens em movimento errático. No corpo, eram as cordas da carne querendo fugir aos pares para todos os lados. No ar, eram as correntes se agitando e mexendo o vapor.

                E os movimentos desvairados daquela maestro giravam pelo céu conforme a multidão de músicos descrevia longos volteios pelo ar. Passavam por cima e por baixo de Jofric, ou ao seu lado, entretidos com seus instrumentos e parecendo ignorar aquele escritor pendurado no céu por força de vento voluntarioso.

                Conforme evoluíram os movimentos da música, o céu tornou-se tão negro e tão pavoroso que o mais horrível dos lagos ou a mais assombrada das cavernas e catacumbas pareceria oferecer aconchego. Estando na terra, fugir do céu é complicado, mas estando em pleno ar, como livrar-se de tal medo? Raios com as lonjuras de rios traçavam estradas de temor pela tempestade que descortinava água e insanidade pelo firmamento. Era noite, devia ser noite, mas nessa escuridão repousava a dúvida da própria hora exata do dia.

                Jofric descrevia voltas e era jogado para as mais diversas direções, um mosquito no vendaval. A chuva lhe crivava, o aguaceiro uma artilharia impiedosa. O som da orquestra o ensurdecia, a luz dos relâmpagos ocupava sua visão, revelando mais daquela orquestra sobrenatural e mais daquele céu que, ao mais se revelar, mais pavoroso ficava.

Então com um último assomo de vento e surpresa acordou no chão de seu quarto de pensão, a janela de sua morada escancarada, a janela do quarto ao lado batendo furiosa contra a parede. Estava sob a luz do quadro, o clarão dos raios projetava desenhos fantásticos nas paredes.


Pôs-se de pé.  Estava transido de frio e encharcado.


As coisas impensáveis que ele pensou a partir dali, narrarei a seguir...