terça-feira, 31 de dezembro de 2013

::: Ânimo da Tempestade (parte um)


Jofric não era moço de igreja. A luz da janela entrava beneditina pela janela do seu quarto, mas as cortinas egípcias com votos a Ísis barravam o vento e inflavam-nas como velas cheias de um barco que não vai.
Pois ali naquele quarto ele escrevia, e fazia pretas páginas e mais páginas de seus diários, de seus escritos. Ele perdia-se em linhas retas, seu corpo serpenteava nas linhas da caligrafia perfeita. Por encomenda escrevera uma ou outra boa obra catequética. Cansara-se de ocultar nas mensagens suas críticas à igreja e ao clero local – nunca fora percebido. Ou se fora, fora igualmente ignorado. Escrevia sobre a fé apenas com a franqueza da encomenda e com a grandeza de seu talento.

Mas Margarite, de quem se via noivo desde sempre, só se cria bela sob o véu de ir rezar. Era por causa dos locais onde ela aceitava ser vista com ele que Jofric não deixara há muito de aparecer diante das velas debulhadas no altar. Ele não gostava daquele lacre de madeira que era a igreja da vila – uma confusão de retas e tábuas, brechas fechadas com cera e madeira lustrosa.

O que fazer, contudo, quando o destino quer unir um nefelibata que escreve de noite a uma nefelibata que reza? O jovem decidiu que aquiesceria por tempo indeterminado com essa mania da moça, tendo ele apenas indiferença e nenhum desprezo pela igreja e pela fé dela. Tudo o que queria – quando não estava devaneando na tinta – era vê-la.

Feita esta introdução cabível a quem não tem em mente, por sorte, aquelas imagens e pormenores que eu tenho, cabe agora citar que Março trouxera uma quantidade estranha de vento e de chuva. Raios tropeiros vinham de longe, riscando o céu com o pó da estrada e alguma luz do outro lado do vale. Os ventos eram desconhecidos por ali – arredios e rudes, eram como bêbados e mendigos, verdadeiros indesejáveis, mas quem poderia enxotá-los de lá?

E tão intensas eram essas tempestades que assolavam a região que as pessoas tinham de ocupar os ouvidos com outra coisa, caso contrário sucumbiam a uma profunda crise de medos, pavores inominados, um princípio insuspeito de loucura, um desprazer tamanho e visceral que as impingia aos mais desvairados e reprováveis dos comportamentos. Canglores de panelas lavadas, sinos maiores para as vacas que não eram deixadas em paz, crianças excitadas a seus brinquedos, cuidados esmerados com os vários porcos, tudo era válido para afastar dos tímpanos as batidas da chuva e as pancadas do trovão imperioso.

Acontece, nesse meio pernóstico, que nem tudo na vila era rural e dotado do barulho comum do campo e da lida pecuária, que bem podem ser aumentados até tornarem-se quase ensurdecedores. Como se fosse mais nobre, entre as casas longe do feno amontoado e da horta plantada o que ocupava os ouvidos sensíveis à tormenta era a música. Que os maestros da lavoura aumentassem o rufar de porcos roncadores e fizessem a mulher cantar alto o pilão! Ali, naquele recôndito urbano onde havia alvenaria, as casas tomavam-se de música.

Os mais pobres reuniam-se aos gordos bêbados que, velhos e ébrios, tocavam suas harmônicas na rua, sob os beirais das casas fustigadas pela água. Suas sanfonas, quando dentro das tavernas humildes, evocavam o bater forte das canecas em festa – mas tudo isso era não por alegria, mas por desespero. Era o gesto do pobre que, ao invés de sincero, fazia-se apotropaico, afastando uma má sorte e um desvario de razões que viera com aqueles ventos de longe.

Aqueles que não podiam com o barulho da chuva – quando esta era tão forte com trovão e rugido, tanto que nem os instrumentos roídos nem as canecas batendo a todo momento (até vazias) faziam possível esquecer precariamente o barulho da tempestade lá fora – estes punham-se a dançar. Nos primeiros dias em que essa chuva armava-se e arrasava as calmas, essa dança era animada, festejando a labuta adiada pelo péssimo tempo e o momento de festa. Mas com o passar dos dias, que tornavam-se mais ventosos e encharcados, essa dança foi virando quase que uma necessidade impudica, inegável e terrível. Era no bater dos pés, na concentração dos volteios, no vai e vem dos quadris que muita gente por ali conseguia realmente furtar-se ao pavor estremecedor que era aquele desfile de tempestades no céu.
               
           Bom, sendo assim, pavorosa, essa situação dos humildes, a situação dos pretensos humildes em suas casas de alvenaria e mobília não era tão diferente na essência, embora fosse muito mais aprazível à forma – tanto que me é mais inspiradora a descrição. Se por um lado gosto daquela lascívia inocente da dança e da festa no lugar pobre, no muquifo ou na choça, por outro lado tenho de abominar essas coisas que vez ou outra temos em tais locais. O que a torna melhor é poder aquiescer com a necessidade de mais cerveja para poder continuar por lá.

         Contudo, reconheço minha criatura como pertencente aos solares tórpidos, em cujas salas cheias de móveis e utensílios – mas vazias de gente ou calor – o som das tempestades era muito pior porque ecoava na vastidão de salões ornados e longos corredores cheios de quadros.

       Nessas casas ricas, contudo, a música também imperava. Menos intensa, porque o cravo com facilidade some diante do ronco dos céus. Era necessária uma coleção de finos músicos para acalmar os ânimos, mas eram poucos os tocadores de instrumento em cada casa, em cada família, de modo que o que podiam fazer era ficarem bem próximos à lareira e concentrados, em seu silêncio nada modesto, em escutar aquele pai que tocava oboé, ou a filha mais talentosa que dedilhava as teclas, ou os meninos que cantavam em coral, ou a aia bonita que sabia músicas de cor.

          Mas Jofric, nesse ínterim...
         Ah, o que dizer dele? Simpatizo com ele. Sei que simpatizava com ele antes mesmo de surgir em meus pensamentos. Quando o encontrei nas primeiras linhas de minha escrita, já sabia que era um querido conviva de outras datas. Não o creio bom amigo, até porque ele estranha-se com esse negócio de amigos e gente, mas é pessoa interessante. Gostaria de brindar com ele, mais de uma vez. Surpreende-me um tanto que Margarite goste tanto dele, pois poucas mulheres daquela vila deveriam conhecê-lo, tão pouco ele se expunha.

         Mas enfim, ele, neste ínterim de barulho sobre barulho, punha-se extasiado em sua janela do quarto da pensão e abria os braços para a chuva feroz. Ele regozijava-se com os trovões e alegrava-se com o vento. Não que aqui caiba uma metáfora de liberdade – ele já era livre pois amava e conseguia muito bem trancafiar-se sem ninguém – mas ele fazia isso por alegria intensa, senão por uma gratidão. O que ele amava mais que a escrita, quando não tinha inspiração nem para listas de compra e em se tratando de ofícios das mãos, era a música.

        Ouvia a mediocridade aprazível da orquestra local sempre que esta se punha na praça, normalmente antes ou depois da missa – e essa banda, com dois percursionistas, uma flautista, um clarinetista, dois sopradores de metais e um velho maestro não era menos querida por todos os outros que a escutavam dedicados.

          Por isso e mais, ao saber que a vila estava tomada por uma necessidade por música, simpatizava com todos. Também ele tinha na música um asilo habitual. Nela abrigava-se da falta de inspiração e da inquietude que a lonjura carola de Margarite impunha. Ao saber que todos abrigavam-se da chuva na música melhor do que sob os telhados, respeitava-os na admiração calada e imparcial, ainda que distante, de quem se identifica com muitos que antes eram ignorados sem problema.

       Mas a tempestade que ia e vinha todo santo dia também veio a incomodar Jofric, tirando-o de seu estado de espírito em regozijo. Por duas vezes ele conheceu o ânimo da tempestade, e narrarei porque ele teria razões de reconciliar-se de vez com o altar ou então afastar-se dele para sempre.

...narrarei na parte dois...

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

My Feet are Light

Ways I tread are always full of beauty.
Today, upon a corner of much-trodden grounds, I saw light filtering through dusking clouds and the flowers crowned the tre with sublunary grace. "There is some beauty here, of course. But the ways that go have more beauty and substance for me than the the ways that come. The going dust glimmers, the hanging dust is dull."


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Os caminhos que percorro são cheios de beleza.
Hoje, na esquina de chão muito percorrido, vi luz através de nuvens anoitecedoras e flores coroando a árvore com graça sublunar. "Há beleza aqui, é claro. Mas os caminhos que me levam são mais belos que os caminhos que me trazem. Os pó que vai cintila, o que fica, perde cor."



sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

   Hoje, de repente, descobri que tinha tempo. Havia ganhado tempo. Tempo livre, para mim. Um presente tão pequeno, tão bom, tão singelo, igualado apenas pelo fato de ser algo tão breve, efêmero, fugaz. É ganhar um chocolate da alemoa, é entrar na sala gelada vindo da rua quente, é ouvir o sinal batendo na troca de aula.
   Projetado para ser bom, dura pouco.

   O que quero nesses tempos? O tipo de mulher que mais gosto - uma mulher com a decência de amar sem absolutamente nenhum limite.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

to Emily

Bliss is a work of countenance
On humility that myself informs -
I hide or I abstain in ensouled penance
as if petals worked the pierce of thorns.

And as solitude, unbound,
Moves me from me to sincerity,
In joyous silence do abound
the labors of one - not society.



Escrito há um tempo, mais de um ano, para a aniversariante de hoje, Emily Dickinson, que ajudou, talvez sem saber, a mudar minha vida também. Um pouco modificado.