terça-feira, 26 de novembro de 2013

::: Repost - Renovar a Vida

i - Madrigal


Eu estava com outra - seria você?
Observávamos as garças de Março
sob a chuva no leito do Morava,
e quando as libélulas azuis, muitas,
pousavam no seu cabelo, eu e você
nos uníamos num singelo abraço,
e sua túnica de seda ruflava - eu dizia que te amava.

Quando os espíritos do rio célere
com os da chuva de inverno comungaram,
quando os gansos-bravos voavam para longe,
eu dormia com as carpas, sussurrava "espere-me".
E se os gelos às suas pálpebras incomodavam,
partíamos para longe - você me perguntou "aonde?"


ii - Commedia

E nos estuários pardacentos do Danúbio
vimos chorarem as bailarinas, concubinas,
e testemunhamos o afogamento das orquestras.
Era tão azul aquele cinza, lembro-me de alguém.
Será você? A luz da porta bate ao dia, e dúbio,
é assim que me vejo, e sigo seu vulto deitado nas cortinas,
reclinado qual neve que pesa nas florestas.

E desprezamos, um de cada vez, em tempo,
os banquetes do palácio imperial. Pudera!
O cisne e a ave do lago lindamente cantam
sem coleira ou tempero. Lembro-me disso como exemplo,
e quanto o médico virou monstro, desses que por aí erra,
com toda bondade você me aconselhou, os olhos amam.


iii - Seresta


E se de noite a vinha no choupo se enlaçava,
mais que depressa um ou outro murmurava:
"é o vento, que por rosas arrancadas chora."
Mas o dia sempre conseguiu vir e raiar,
e ao tocar com lábios a sua pele, jurava - te amava.
E se os sentidos privados são por hora,
digo hoje que são remorsos da demora.

Quando a pele começou a secar e fria,
os Urais estavam enrugados como o Verão.
Você chorava pela luz do dia e por nós.
Eu ofereci corrermos pela paragem de dia
e dormirmos com os trilhos (que um dia sonharão),
e como um cisne você reclina o pescoço - por nós.


iv - Balade


Assim, nos amamos mais e amamos mais tristes,
e no lado claro dos Alpes vimos as pastagens,
e no inverno escuro do Sena, mil imagens,
no doce sono do Nilo (cobra de vidro), miragens,
e nas velhas margens do Pó, algumas postagens.
Cansamo-nos, ainda amando. Criando coragem,
seguimos o vento de sal sem nenhuma bagagem.


v - Ode

Vimos os peixes que infartavam o Mississípi,
e ao Sul, um verso livre se afogou no Amazonas.
O uivo do coiote era como o choro do lobo,
As lágrimas da arara, a alegria do rouxinol.

A partir de então, no Novo Mundo era assim:
eu só escrevia em quatro versos, um quinto
só enquanto você me beijava. E no fundo, perguntava:
O que faz aqui, se no Morava você dizia que me amava?


vi - Eco

E a vida já se esvaía;
as rimas rareavam.
A luz da noite se perdia,

As novidades se espelhavam,
chorar o peito eu queria,
meus olhos diziam, te amavam


vini - Scene

E eis que o frio do Inverno.
E eis que acho - nada é eterno.


vinci - Verso

Gelo. Tudo pára.


ix - Verum

Vi um raio de Sol.
Muito longe.
Veio tão veloz,
veio tão rápido.
Eu que vou em direção a ele,
e do escuro já sinto sua voz.
Vamos brincar nos charcos do Morava!
Eu te amava, você me amava!
...
E a vida se renova.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Os Desencontros

Simples assim.

A água flui;
A rocha espera.

A onda quebra;
A praia dorme.

O vento corre;
A montanha cala.

O fogo consome;
A madeira sobe.

A terra seca;
A chuva cai.

A casa fica;
O morro vai.

A dança pára;
O chão permanece.

A cama acalma;
O lençol entristece.

O olho fecha;
A estrela brilha.

E o encontro acaba.
Os desencontros são.

domingo, 10 de novembro de 2013

Fama

   A necrológica da raça humana me espanta. De noite a mente singular daquele poeta me desperta e eu sou levado a pensar nessa coisa da morte na gente. E esse meu meu pensamento, da morte em vida, fica suspenso no ar.
   A necrológica está no nosso ímpeto diário, de quando guardamos a carteira a quando fazemos ou não nossas preces noturnas, pensando se as fazemos ou não.
   E a face do morto, um betume estranho que tome as feições de um rosto de carne como agourado por Lima Barreto, encerra sob os sulcos ou falhas pelo tempo cavados e ali deixados uma outra face que um dia foi vida.
   Talvez a face perdida de um mendigo feliz, talvez o rosto de um pintor. O rosto que assusta porque é feio, coitado, mas que alegra porque sabe ser só sorriso.

   "Que belos dentes tinha ele" dizem os da exumação, mas a necrológica das gentes é assim, pequenecedora, minimalista, dentária.
   Mas então a mente divaga, e se solta. Desassocia-se da vida e emparelha com a morte, e sabemos de fama ou herança. O que é história senão morte em vida?
   E o homem, nessa necrológica, pode não deixar um morto descansar. Dar paz a um indivíduo é esquecê-lo, irremediavelmente.
   Mas isso foge à necrológica, e a gente sem arte não vive; sem lembrança, seca; sem memória, murcha. E o morto assim vive outra vez, no espaço assombrado de memórias ou retratos, até que me deito e durmo.
   E e é necrológica outra vez.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

"Nervos D'Oiro", de Florbela Espanca


Meus nervos, guizos de oiro a tilintar
Cantam-me n'alma a estranha sinfonia
Da volúpia, da mágoa e da alegria,
Que me faz rir e que me faz chorar!

Em meu corpo fremente, sem cessar,
Agito os guizos de oiro da folia!
A Quimera, a Loucura, a Fantasia,
Num rubro turbilhão sinto-As passar!

O coração, numa imperial oferta.
Ergo-o ao alto! E, sobre a minha mão,
É uma rosa de púrpura, entreaberta!

E em mim, dentro de mim, vibram dispersos,
Meus nervos de oiro, esplêndidos, que são
Toda a Arte suprema dos meus versos!


~Charneca em Flor