terça-feira, 30 de julho de 2013

"Silêncios", de Mário Quintana

Em homenagem ao digníssimo Mário Quintana, poeta brasileiro, que hoje completa mais um aniversário, em silêncio.

Silêncios


Há um silêncio de antes de abrir-se um telegrama
[urgente
há um silêncio de um primeiro olhar de desejo
há um silêncio trêmulo de teias ao apanhar uma
[mosca
e
o silêncio de uma lápide que ninguém lê.




segunda-feira, 29 de julho de 2013

::: Wisdom

Them candles can't avail me this time.
This time I'm consigned to doubts
And little lights can't help me this time.

All the omens turn obscure,
And wherever I turn my eyes to
What I see turns obscure.

Glimmers of reason visit me then and now,
And now I'm thrashed by questions
And by meanings, confused then and now.

My sight is feeble and so is my dream,
My dream, one of obscurity -
My words can't tell the color of my dream.

Hope tainted my minutes and hours
And hours pass with little relief;
I numb myself for seconds and hours.

I can think of many things new,
Many ways out of this cloudform maze,
But out of it my wisdom won't follow...


The soul is ahunt, it beckons -
It beckons peril and incites desire.
I notice someone out - it beckons.



quinta-feira, 25 de julho de 2013

Dia do Escritor

Memorial

Ia falar de bocas e de olhos, de seios e de cabelos,
mas sinto o meu cenho pesado, há muito em minha mente.
Há tanto, tanto...

Eu comentaria dos dias, das idas e das vindas,
de minhas folgas insepultas e minha correria sem vergonha.
Mas há tanto, tanto...

E falaria de dores boas de se doer, ou de amores,
que são sempre, sempre bons de se sofrer,
Mas há tanto, há tanto..

Portanto há tanto
Por tanto...
-------------------------------------------------------------

Há quem faça das palavras suas prostitutas. Eu não. Jamais conseguiria gritar com elas, escravizá-las, oprimi-las, ofendê-las. Não exploro elas, elas me exploram.

-------------------------------------------------------------

(THE LARCH!)

E em comemoração a mais um dia do escritor, segue um conto de Machado de Assis, mestre de letras, que com este impressionou pessoas e momentos.



UNS BRAÇOS


Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.
- Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!
- Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!
D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.
Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.
Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.
Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.
Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.
Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil coisas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga.
Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, - ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória.
- Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.
 Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde, jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.
- Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais.
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.
- Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.
- Não tenho nada.
- Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...
E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: - vadio, e o côvado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.
D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer.
Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas.
 Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.
- Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.
 Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.
 D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.
 A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.
 Um domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo, - estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.
 Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.
 É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal.
 Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude.
 D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dois, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. Uma criança! disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.
- Uma criança!
E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, - dormir e talvez sonhar.
Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, - ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.
Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio.
 Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:
- Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.
- Sim, senhor. A Sra. D. Severina...
- Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela.
Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra coisa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:
- E foi um sonho! um simples sonho!

terça-feira, 23 de julho de 2013

"Furious Angels", de Rob Dougan




Like a sentence of death,
Como uma sentença de morte,
I got no options left,
não tenho opções,
I've got nothing to show now.
não tenho nada para mostrar.

I'm down on the ground,
Estou no chão,
I've got seconds to live,
Tenho segundos para viver
and you can't go now.
E você não pode ir agora.

'Cause love, like invisible bullet shot me down
Porque o amor, como uma bala invisível me derrubou

and I'm bleeding, yeah I'm bleeding
e estou sangrando, sim, sangrando
and if you go, furious angels will bring you back to me.
e se você se for, anjos furiosos vão te trazer de volta.
They will bring back to me.
Eles vão te trazer de volta.

You're a dirty needle,
Você é uma agulha suja,
you're in my blood and there's no cure in me.
você está no meu sangue e não tem cura em mim.
I wanna run, like the blood from a wound
Quero correr, como sangue de uma ferida,
to a place you can't see me.
para um lugar em que você não possa me ver.
'Cause love, like a blow to the head has left me stunned
Porque o amor me nocauteou como um golpe na cabeça
and I'm reeling, yeah I'm reeling
e estou me arrastando, sim, me arrastando,
and if you go, furious angels will bring you back to me.
e se você se for, anjos furiosos vão te trazer de volta.

You're a cold piece of steel between my ribs
Você é um pedaço de aço frio nas minhas costelas
and there's no saving me.
e não tem jeito de me salvar.
And I can't get up,
E eu não consigo me levantar
from this wet crimson bed that you made for me.
dessa cama vermelha e úmida que você arrumou pra mim.
That you made for me!
Que você arrumou pra mim!
'Cause love like a knife in the back has cut me down
Porque o amor me cortou como uma faca nas costas
and I'm bleeding, yeah I'm bleeding,
e eu estou sangrando, sim, sangrando,
and if you go, angels will run to defend me, to defend me.
e se você se for, anjos correrão para me defender, para me defender.

'Cause I can't get up, I'm as cold as a stone,
Porque não posso levantar, estou frio como pedra,
I can feel the life fade from me.
Posso sentir a vida acabando em mim.
I'm down on the ground, I've got seconds to live,
Estou no chão, tenho segundos para viver
and what's that waits for me, oh that waits for me!
e o que é isso que espera por mim, que espera por mim!
'Cause love like a sentence of death has left me stunned,
Porque o amor me nocauteou como uma sentença de morte
and I'm reeling, yeah I'm reeling,
e estou me arrastando, sim, me arrastando,
and if you go, furious angels will bring you back to me.
e se você se for, anjos furiosos vão te trazer de volta.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Um microconto

Dei a ela um cardigã de pele de onça.

Foi errado, eu sei, mas ela queria.

Ia contra meus princípios.

Ia contra meu bom senso.

Contra minha dignidade, até.

Mas ela namorou aquele cardigã durante meses.

Não pude negar aquele agrado a ela, ver na sua face a alegria por algo tão... tão...

Tão caro.

Ela me pagou com cheque. Odeio cruzar cheques.

"Senhora, a nota fiscal."

Ela nem ficaria tão bonita.

"Próximo."

Já esta levou só um sutiã para ganhar mais cupom pra promoção.

Acabaram minhas moedas de cinco centavos.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Be Warned

You who attack my vision will be pierced by an arrow so keen your heart will know surety the sharpest way.

You who assail my peace will be tracked by wolves so dire your flesh will know pain the wildest way.

You who oppose my search will be blinded by ravens so vicious your sight will know darkness the grimmest way.

You who tangle my feet will be cut by edges so cold your frame will know disrepair the bloodiest way.

You who threaten my quest will be smitten by light so pounding your wickedness will know retribution the mightiest way.

You who attempt to meddle with my task, one must sure and pure, one which your mind can’t fathom, one that renders your whining pitiful, you who attempt to break me shall be broken by hands so powerful that your self will be taught the wisest, the harshest, the clearest way.

Step away you who are in my way. The prize is mine. Victory will be mine. Yours is the shame. You can keep the shame.


And I win.
------------------------------------

segunda-feira, 15 de julho de 2013

De Pessoa a Quintana

------------------------------------
Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
                                ~ Fernando Pessoa
------------------------------------


A vida passa e tanta coisa passa por nós. Tantos rostos, tantas vozes, tantos ombros, tantas bocas... Que estranha essa multidão que se chama gente, esse aglomerado que se chama vida...



------------------------------------
POEMINHA DO CONTRA
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!
                                ~ Mário Quintana
------------------------------------


domingo, 14 de julho de 2013

As Rosas e o Punhal, Crônica Dois

Crônica Segunda – Das tristezas que abateram-se sobre Varuzal, pequena vila, e do encontro com velhos conhecidos.
Datação – Últimos dias do Abril, Marca dos Reis, fronteira contestada entre Corussa e Fárgia.
Arquivo – Pessoal
Segue-se agora o relato de acontecimentos de sonhos e terror, mistérios desvelados e maravilha, como contados por mim, Varyn, Cronista-Mor-e-Primeiro e Agente de Campo da Convocação dos Vários Caminhos, Arquimestre no Conselho e homem há muito vivendo.

*
*2*
*

Q
uando deixei Farga, a província real do reino de Fárgia, fi-lo com a intenção de chegar a Corussa em alguns dias de viagem pelas estradas tão cuidadas daquela região. Atrasaram-me chuvas pouco comuns para a estação, e em tal ocasião não estava sozinho. Eu encontrei muitos refugiados do norte vindo em levas desajustadas para a segurança dos reinos abaixo da Serra Fria, e com aqueles que falei não obtive informações úteis.
   Não estava eu sozinho em tal ocasião. Acompanhava-me Seraf de Sarão, um de meus pupilos, e ele sempre me foi boa companhia pela leveza do coração e a franqueza de atos e de espírito. Se ele por vezes deixava-se enervar e levar pelo momento, fácil enrubescendo-se do sangue quente, por vezes também foi ele meu elo mais valioso com aqueles momentos em que a decisão tinha de ser mais emocional e gentil e menos racional e franca.
   Um jovem rapaz de olhos claros e cabelos mais claros que o cobre, ele atrasava minha andança com os suspiros e coxas que o seguiam, detendo-nos em lugares insuspeitos. Fosse fugindo de hordas de fazendeiros ou de um pai ou marido magoado, ele fazia-me viajar sempre com a pressa pelo horizonte e a vigilância constante por sobre o ombro.
   Mas em Farga ele reencontrara um amor de outrora, Miaga, uma bela aprendiza de cortesã, e meus olhos, que olham também para o futuro das coisas e das pessoas, viam nela uma importância imensa por vir, sobretudo para a vida de Seraf. Creio que apesar de se gostarem, jamais ficarão juntos, embora seus destinos estejam fadados a se cruzar inúmeras e inúmeras vezes, sempre um em prol do outro.
   Como ele se entretinha com o sorriso amigo e a coxa ousada de Miaga, eu não tive preocupações na minha passagem por aquela província. Tive com o casal real e a camarilha em um par de audiências que não me foram custosas para conseguir – eu vinha em missão da Convocação, com trajes e sinetes que mostravam que eu não estava ali como andarilho.
   Levei missivas do Conselho endereçadas a alguns nobres das mais ricas e prestigiadas casas locais, precisávamos de investimentos para cobrir despesas com a guerra e Fárgia não tinha tais preocupações, tendo, por outro lado, a sobra de recursos. Tudo o que consegui arrancar daquela gente, contudo, nas duas audiências, foram promessas quase que infundadas e carroções carregados de madeira, carvão e armas de forja comum. Aproveito este escrito para citar os modos faltantes entre alguns dos nobres de Fárgia, que pela minha língua e mão que escreve serão conhecidos em vários cantos deste continente como insensatos, sábios por embuste e maus amigos.
    Não todos, disso assegurem-se os bons entre eles, pois se houve missivas endereçadas a nobres fidalgos de Fárgia, eu dirigi-me pessoalmente ao Senhor Calado, que por nossa amizade e por comprometimento com ideais maiores, demonstrando assim visão, despachou ordens de reunir seus comboios em uma grande frota que levaria homens e suprimentos pelos caminhos fluviais até Corussa e o norte do Vale das Atalaias. Deste homem e de sua casa espalharei a fama e a boa visão.
   “Teus modos como escritor variam.” Disse-me Zur, minha caveira falante, conforme escrevi estas linhas “Que façam bom uso de teu exemplo aqueles homens vindouros que se aplicarem à pena.”

   Mas Zur talvez desconhecesse as razões por trás da pretensa vaidade dos fidalgos de Fárgia. Assim pensariam também os simplórios que me lerem ou souberem da história por minha narração. Para quem tem visão e prudência à frente das opiniões, nunca se nega um pedido da Convocação sem forte razão para justificá-lo. Eu sabia, e também o sabia o Conselho, que os nobres de Fárgia há muito metiam-se com gentes do Grande Comodorado. Essa organização gananciosa começara entre fabricantes de graxa e funileiros e então controlava nações e dispunha de exércitos e máquinas de guerra jamais descritas. Por sua tecnologia e amplos recursos os Fargianos se interessavam e muito. Para navegar as águas do mar interno e manterem-se os grandes comerciantes que se gabavam ser, o povo de Fárgia buscava cair nas graças do Comodorado, que só cederia seus administradores e prospectores, além de seus engenheiros incomparáveis, mediante uma vantagem ofertada que fosse muito maior do que aquilo que investiriam e emprestariam. Agiotas montados em cavalos de guerra, extorsões feitas à base da pólvora e do sorriso, a isso se resume o Comodorado. O Duque Handelsmar, que ouvi falar ser o chefe desse conluio de banqueiros de armadura, era conhecido de norte a sul com palavras rudes e tão ferozes que eu, não dado a boatos, não negaria a maior parte deles.

   Ao sair de Farga, portanto, pesava em meu cenho o rol de atribulações que os nobres de Fárgia e a influência crescente do Comodorado traziam à minha mente. Sarão estava quieto e pensativo, já saudoso da companhia agradável de Miaga. Eram eles tão jovens e sinceros um com o outro, e apesar dos luxos da carne a que cada um dava-se, eram entre eles inocentes e inseguros como o são as crianças que se amigam fácil e naturalmente.
   O silêncio dele em muito me ajudou a pensar, e por isso lamento. Mandei mensagens e mais mensagens para o Conselho durante aqueles dias de viagem, e pouco aproveitei dos caminhos pedregosos de Fárgia. Evitamos as vilas e as aldeias, e dormimos próximos à estrada, mas poucas vezes ao longo da jornada em direção ao oeste. Pensava eu que seria melhor ir até Auglandoc, pois o encontro com um conhecido pesava em meus augúrios. Em Angladoc eu esperava rever Elão de Varraquêz, um vampiro do norte com quem tive uma aventura sangrenta nas montanhas de Deltim, no reino que citei.
   Fui impedido, em parte, de ser eu o agente principal desse reencontro, embora eu soubesse em minha mente que tal encontro era inevitável.

   O fato é que no sexto dia de viagem Sarão e eu encontramos uma vaca morta próxima à estrada. A podridão do animal empestava o ar. Nada demais para uma região de lobos, não fossem marcas que me chamaram a atenção. Sendo Sarão um licântropo e entendido de ataques de besta por ser filho de armadilheiro e caçador, não demoramos a concluir que não foi obra de besta, mas de mão humana a morte do bovino.
   Intrigou-me aquele abate porque não havia sinal de uso da carcaça do animal. Quem quer que tivesse dado fim à vida da vaca, o que fora feito com uma lâmina grande que abriu um talho de fora a fora no pescoço e na barriga do bovino, o fez sem propósito aparente. A carcaça jazia inteira.
   Sendo os camponeses incapazes de dar fim a um animal daqueles sem que seja para aproveitar-lhe a carne ou o couro, pensei se não fora abatida por motivo de doença ou ataque, só que cedo descartei tais hipóteses quando Sarão achou restos de parafina ali perto, sob a sombra de uma pedra. O animal fora morto por motivos ritualísticos, alguém usou de necromancia para adivinhar sortes e obrar sortilégios. Tal fato causou-me ainda maior estranhamento, pois os Fargianos tinham aversão às coisas da magia e da Arte – o que lhes ajudou os nobres a negar pronto auxílio à Convocação em prol da disposição quase prostituída de agradar o Comodorado.

   “Obra de gente do campo, com certeza.” Disse eu, analisando o material das velas, que era de simples origem, e ligando às evidências o achado da carcaça do animal. “Quem quer que o tenha feito, e tão próximo a uma estrada que não é encruzilhada, o fez para consultar nas vozes da morte indícios vindouros.”

   “Devemos nos preocupar com isso?” Perguntou Sarão, agachado junto à pedra. Ele não queria, em parte, entediar-se com uma região campesina de Fárgia, mas por outro lado atiçava-lhe o cheiro da aventura e do desconhecido.

   “Não creio que seja necessário. Vamos até Varuzal, uma vila que fica aqui perto.”

   “Ainda é em Fárgia?”

   “Sim e não. Fica na Marca dos Reis, e disputam-na Fárgia e Corussa. As pessoas que ali moram são de ambos os reinos.”

   Encontramos, no caminho para a citada vila, mais duas vacas mortas. Uma delas, que era toda preta, fora decapitada e sua cabeça estava sumida.

   “Ainda não é necessário nos preocuparmos?” Perguntou Sarão. Meu silêncio respondeu-lhe enquanto eu observava a carcaça do animal preto, que encontramos pouco antes do cair da noite.

   “É provável que os camponeses já estejam atentos a isso.” Disse após muito analisar o que encontramos “Vamos nos inteirar dos acontecimentos mais recentes quando chegarmos aos portões de Varuzal.”

   A noite era a dona do céu no momento em que as luzes de Varuzal revelaram para nós muitos insones na pequena vila. O que estava acontecendo naquele local ficou implícito para mim quando nossa entrada foi recusada.
   “Se não são mercadores nem gente da igreja, podem dar meia-volta e ir embora. Durmam com a palha nos campos, procurem cabanas de gente da terra. Aqui só entram amanhã. Vão embora.”

   E por mais de uma vez essa foi a resposta tácita do porteiro, que ignorou completamente qualquer argumento nosso.
   “Por que não diz a ele quem é você?” perguntou Sarão assim que a portinhola da guarita do vigia se fechou pela oitava vez naquela noite.

   “Não o quero, e não sei se ajudaria numa hora como essas. Essa gente está com medo. Vamos, quero um jeito criativo de entrar na vila.”


   Pronto. Já falava em mim o aventureiro que eu era naqueles momentos em que eu achava que o fogo aceso era mais interessante do que o uso que propositava as chamas.

sábado, 13 de julho de 2013

Contigo, Monólogo

Não feches teus olhos - não invadas meus domínios!
Com as migalhas que achares, sova teu pão!
Com as  libações que afanares, embebeda-te!
Com os olhares que roubares, satisfaze-te!

Não te queixes de noite - não perturbes meu sono!
Com as lágrimas que derrubares, banha os corpos!
Com as palavras que pesares, abençoa-te!
Com os sonhos que sonhares, consola-te!

Não te estranhes do rumo - não conheces meus olhos!
Com os feitos que deixares, alcança-me!
Com obras que questionares, realça-me!
Com lembranças que esqueceres, aviva-me!

Não feches as mãos nem cala a boca!
Fecha a boca e cala tuas mãos!
Abra teus olhos, viva de noite.

O rumo é estranho

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Them Troubled Creatures

Loathsome creatures, both of us but for us both.
Playing with daggers - fools playing with daggers.
We smile at each other calling for ruination,
summoning our demons at the tablecloth.

"What's up for tonight, darling?"
"You choke on your stubbornness and die."

Hurting the hurt at each other,
Hurting each other.

Don't cry alone,
Come and let us bleed together!

"What a chaos you wrack, my love."
"I love you my stinging bee."

domingo, 7 de julho de 2013

As Rosas e o Punhal, Crônica I, parte V

*
* 1 *
*


Preâmbulo
Hoje, em Mencal, conheci um bruxo pagão que usa lama do brejo local para curar qualquer “aflição do espírito e da carne”. Se ele está certo não me coube dizer, pois estive muito brevemente naquele canto e apenas para refazer provisões depois de uma longa travessia pelos prados a leste da Marca dos Reis. Varyn trocou algumas palavras com o homem e, como sempre faz com esse tipo de gente, fingiu-se de tolo. Fez-se de desentendido até a hora em que o bruxo lhe estendeu um punhado de lama do brejo, ainda pingando a água palustre do odre no qual a terra era mantida. Varyn tomou aquela lama entre as mãos e devolveu-a admirado. Se essa admiração era fingida, jamais o saberei, mas julgo que foi sincero o seu espanto. O que guardarei em minha mente a partir do dia de hoje é que mesmo os homens de maior valia, visão e sabedoria são iguais a mais simplória das crianças quando sai para errar: a terra nos encanta.
– Craterla, diário

T
al como o ferro em brasa que vê na água uma promessa de alívio e acaba por tornar-se forte e íntegro, eu vi no horizonte tomado por picos e neve uma promessa de força. Eu colocara-me em desafio. Elão, vampiro, subiu a montanha com velocidade notável. Deteve-nos a intensidade da nevasca e a irregularidade do caminho, mas por fim achamos, seguindo rastros, cheiros, sons e intuições, a grande reunião dos bárbaros das montanhas.
   O que aquela massa de rufiões via de sagrado em um solstício não me interessa senão menos do que nada. O que tornava esse sagrado digno de sacrifícios de vidas humanas, entendo pouco. No passado aquela escória sacrificava seus inimigos de guerra pendurando-os pelos pescoços em longas cordas, que por sua vez eram atadas a mastros longos que eram cravados nas bordas dos precipícios. Era de sua cultura sacrificar bois da montanha e cabras para suas divindades bárbaras, e o que isso significa para eles não me desperta a curiosidade. Entendo a mente do simplório ao matar e deixar apodrecer o fruto de seu trabalho na pastagem e na lavoura que muito melhor lhe serviriam na mesa ou no mercado porque espera assim agradar a uma divindade que não vê, mas teme – o que muito iguala os Deuses dos homens aos monarcas e seus anjos aos coletores de impostos e vassalos de pedágios. Mas até esse propósito ingênuo de abrir mão de um bem valioso para apaziguar ânimos sobrenaturais fora pervertido naquelas tribos. Sacrificar gente caçada como cordeiros? Que divindade ou ânimo sobrenatural eles esperavam agradar com tamanha tolice?
   Mate-se um homem na guerra, ou em defesa de suas posses, amigos e família. Ou que o seja para preservar a própria vida, ou a santidade de seus ideais contra a ignorância e vileza alheias. Mas abrir a garganta de uma pessoa e ostentar seu sangue para o sol tão distante, o que isso traria de significativo ao mundo?

   Eram tantas as tendas montadas naquele imenso promontório, o pátio limpo de uma fortaleza dos séculos passados, totalmente arrasada, e tantas eram as cores nas bandeiras e fitas agitadas pelo vento que um vidente pensaria estar chegando a um festival alegre, não a um banho de sangue iminente.
   O sol do crepúsculo de inverno baixava no horizonte, e naquele dia viria a noite mais longa do ano. Ritos de uma semana e um dia culminariam ali naquele momento de matança. Elão e eu abrigamo-nos atrás de um muro, um dos únicos vestígios do tempo em que outrora ali houvera uma imponente fortaleza, salvo o pátio quadrado, amplo e desimpedido.
   “Disseste de um plano. Anima-te a contá-lo?”

   “Sim” respondi ao vampiro “Eu conheço algo desses ritos dos bárbaros. Logo chamarão seu grande campeão, o filho de seu Deus-Sol, e o prepararão para executar os prisioneiros.”

   “Matemos este homem. Vamos dobrar os bárbaros pela destruição daquilo que creem inviolável.”

   Não tivemos de esperar muito. As franjas mais altas do sol estavam abaixo da linha das constelações dos reis, indicando o crepúsculo que começava. Sob os urros de imensa horda e o rufar de tambores enormes que sufocavam o clamor de trombetas e chifres, um homem disforme de tão forte saiu de um buraco na terra. Ele tinha o corpo nu e a cabeça redonda, calva pela lâmina, estava pintada de amarelo. Sua face fora pintada com um imenso círculo branco. Era uma clara alegoria ao sol saindo das trevas, risível pela simplicidade mas repugnante pela circunstância e pela feiura dos aspectos envolvidos.
   O homem tinha pelo menos dois metros acompanhados de um par de palmos. Os ombros eram largos como o perfil de um boi, cada braço uma arma esmagadora de carne e osso. A face pintada era aterradora. Pintaram-lhe a pele nua várias sacerdotisas daquela gente, e naquele momento vi que teríamos problemas.
   A tinta que cada xamã portava estava embebida em um milhar de substâncias que, combinadas, atiçavam a fera dentro dos homens a atacar e sentir o sangue do inimigo. Aquele homem respirava a fúria e entraria no frenesi que desconhece a dor e o medo. Tiravam-lhe a mente e a retidão com desenhos curvos e espirais que descreviam a órbita aparente do sol na abóbada da maior armilar.
   E, mais do que isso, meus sentidos de feiticeiro acusaram ali a presença da magia. Aquela gente fazia seu guerreiro imbatível porque assim o criam, e sua fé misturava-se à magia dos símbolos e das tintas, e tudo amalgamava-se com o fervor de tantas mentes brutas. O campeão dos bárbaros era, contra qualquer lâmina, um muro de granito.
   Durante sua preparação, o homem urrava, erguia os braços, ostentava o corpo para a multidão reunida ao redor do pátio. Acotovelavam-se todos para ver o rito de sacrifícios, os mais fortes tinham assim os melhores lugares.
   “Sinto naquele homem a força de mil soldados. Ele atacará com fúria desembestada e força aniquiladora.” Informei a Elão, que pareceu reavaliar seus intentos de matador conforme percebia a sombra do perigo crescendo em seus sentidos aguçados “Ele está invencível porque assim o crê seu povo.”

   “Que fazer para derrubar aquela força profana, então?” Mas eu sabia bem a resposta para esta pergunta, sabendo também o quão difícil seria realizar tamanha façanha.

   “Ele está invencível porque assim o crê seu povo.” Repeti “Se a fé que têm nele falhar, falharão os sortilégios e falhará ele mesmo.”

   “Deitemos seu sangue. Isso mostrará que ele é vencível.”

   “Fácil dizer. Difícil de ser feito.”

   “Não contra tua feitiçaria, Varyn dos Muitos Caminhos.” Com tais palavras e um olhar furtivo, aquele diabo daquele vampiro ganhara-me pelo orgulho – devia eu provar que era feiticeiro mais capaz do que aqueles sortilégios postos por xamãs ignotos das montanhas e mantidos pela convicção de pelo menos uma centena de bárbaros irredutíveis.

   A matança tivera começo – o campeão dos bárbaros usava das mãos nuas para matar os pobres aldeões e camponeses capturados das terras baixas. Ele abria-lhes as bocas até o rasgar da morte, ou batia suas cabeças no chão até pisar em poças vermelhas. Aquela barbárie inenarrável o colocaria em um frenesi selvagem e inescapável dali a pouco.
   Ele urrava conforme matava, e ao fazê-lo erguia um corpo inerte diante do sol que descia como se o fizesse com um boneco de trapos. Seu povo urrava excitado e feliz, e xamãs jovens, muitos crianças, esgueiravam-se para molhar no sangue dos sacrificados panos brancos que certamente usariam para seus ritos bárbaros. Temiam serem vistos pelo homem e logo vi porque – já meio ensandecido pelas tintas e pela magia, ele apanhou um menino de seu povo e quebrou-lhe as espinha erguendo-lhe o corpo acima da cabeça, apenas com a força nos braços. Atirou o corpo inerte para longe, sobre o povo que assistia a tudo com sanha sádica e pavorosa. Eu percebi também que o homem não conjurava sombra alguma no chão.
   Então os urros foram atrapalhados. O cheiro de sangue de bárbaros misturou-se ao cheiro de sangue de inocentes fracos – Elão abria caminho pela multidão. Os ombros e cabeças eram sua estrada, e pulava rápido de um para outro, a todo tempo golpeando aparentemente a esmo, na verdade sempre mortalmente.
   Cabeças talhadas e sanhas silenciadas, ele aterrou no pátio sagrado para os bárbaros. Os jovens que recolhiam sangue fugiram, todos ficaram espantados com aquela ousadia e sacrilégio, caso eles entendam essa noção, mas o campeão continuou a matança, parecendo não ter notado nada. Ele caía em frenesi.
   Mas Elão chamou-lhe a atenção – apanhou de sua adaga e atirou-a certeira contra o homem. A lâmina, que com a força profana de Elão teria enterrado-se mortalmente no olho de um homem qualquer, apenas riscou a vista daquele matador e caiu no chão sem ter deitado uma gota de sangue ou arrancado dele mais do que um grunhido de dor.
   Com olhos arregalados e um urro demoníaco, o campeão dos bárbaros soltou sua próxima vítima, que como todas as outras berrava sem pausa, e carregou contra Elão como se fosse um touro louco.

   Tanta violência enojar-me-ia a memória não fosse a genialidade ou simplicidade que de quando em quando ocorria para facilitar-me a avidez do relato. E, naquele momento terrível, quem mudava as fortunas era eu. Varyn, o Agoureiro, eu estava sentado com pernas cruzadas uma sobre a outra, no alto de um muro arruinado, a visão cravada no coração daquele bárbaro coberto de glifos. Embora aquela magia fosse potente, eu via claramente suas falhas. Eu via além e por trás daqueles símbolos. A massa de forças envolvida naquela jaula de espirais e glifos, alimentada por fé e esporeada por sadismo estava cheia de pontos francos. Era eu um mestre tecelão vendo buracos imensos, rombos vergonhosos na trama tecida por um mero aprendiz. Era eu um mestre escultor vendo sulcos comprometedores na obra de amadores. Era eu um erudito letrado encontrando erros tacanhos e feios na escrita dos escribas púberes.
   Era eu um arquimago, Cronista-Mor-e-Primeiro da Convocação dos Vários Caminhos observando e percebendo com desgosto o trabalho bárbaro com a Arte.

   Minha visão virou um dardo inescapável e infalível que atravessou as falhas primárias daquelas proteções e símbolos de força. Enterrou-se com ponta de cristal, memórias e vontade mais forte no coração de carne daquele homem selvagem que tentava agarrar Elão em um abraço de morte.
   O campeão dos bárbaros sangrava copiosamente pelos vários talhos abertos em sua pele por Elão, mas aquelas feridas superficiais, se houvessem sido desferidas sobre homens em condição normal, teriam talhado as fibras dos músculos até os ossos. Mas o que fez aquela criatura possuída pela raiva de seu povo parar não foi a dor que Elão lhe causava, esta desconhecida para ele, mas foi minha magia, superior àquela que o enchia de pavoroso vigor.

   Ele tombou sobre um de seus joelhos quando faltou-lhe a força. Eu atacara o ponto certo – minha mente estava devagar, pois devagar eu queria seu coração. Não me interessava controlar aquela mente caótica, não me interessava controlar aquele corpo disforme, por isso eu controlava seu coração. Eu roubava-lhe os batimentos cardíacos, escutava o fantasma de sua cadência em meus pensamentos. O sangue pulsava em seu peito imenso conforme minha vontade e pensamento assim desejassem, e eu os fiz vagarosos e ineficazes como as ideias mais desesperadas do tolo em apuros.
   Elão aproveitara a chance. Naquele momento de fraqueza eu senti a fé dos bárbaros fraquejar. O exército de noções debandou com a morte do rei. O bando de raivas fugiu com a morte do alfa. E com a queda daquela fé, veio a queda da magia que tornava a carne daquele homem quase que inviolável.
   Com três cortes ferozes, sedentos de sangue e som, Elão decepou as mãos do inimigo, uma de cada vez, e castrou-lhe de maneira terrível.

   Os bárbaros não emitiam mais som algum. Os gritos de dor e fúria de seu campeão roubaram o que restava de fé nele. Era apenas um homem mutilado – que nem mais homem era.
   Elão cuspiu-lhe a face e recuou. Encarou a todos os bárbaros com sanha diabólica nos olhos. Arriscáramos uma revolta terrível, talvez até a eleição de outro campeão – mas não. A perda da fé é a perda da fé, e por si só se implica a derrota de todas as convicções. Aquela gente perversa perdera o gosto pela batalha, perdera a fé em seus ritos.

   O vampiro do norte pegou as correias dos prisioneiros e levou-os consigo pela estrada principal que levaria para as terras baixas depois de muitos volteios por caminhos congelados e tortuosos. Eram espólios de um vencedor, isso os bárbaros reconheceram. Afastaram-se quando Elão passou, e ele partiu puxando inúmeras vidas salvas, para sempre marcadas pela violência. A fé de muitos morreu naquele dia, a de tantos outros acabava de renascer.

   Eu pus-me de pé. Pensei se seria útil encontrar Elão novamente. Eu sabia que seria inútil alongar-me com tais pensamentos, pois sabia com maior clareza que independente de minha vontade e ligeireza eu o veria novamente. Eu sabia também que o vampiro estava satisfeito – tinha alegria em saber que os bárbaros perderam a fé em seus ritos mais selvagens e sangrentos, mais alegria do que teria se tivesse, como antes dizia, matado a todos os saqueadores.

   Evadi a visão da cena que seguiu, e evado meus comentários da mesma agora. Basta dizer que o que o povo tornado descrente fez com o campeão e com os xamãs foi indescritível. Não achariam entranhas inteiras deles no fim daquela noite mais longa.

   Pela noite eu deixei as montanhas. Não sei se Elão levara os libertos até as terras baixas ou se logo os largara e seguia seu próprio caminho. Não me interessava muito. Como tributo à providência que em primeiro lugar nos unira naquele dia, eu me desvencilhara dele e esperava o reencontro por capricho da mesma força. Apenas queria que ele não fizesse mal àquela gente débil e maltratada.

   Quanto às amputações que testemunhei na montanha, elas me lembraram de algo muito grave cuja urgência de súbito cresceu em minha mente. Um inimigo meu, um castrado, aparecia naquele tempo com frequência em meus sonhos e adivinhações. Eu sentia que nosso reencontro desfavorável estava por vir, e que por algum motivo Elão estava relacionado a isso.
   Enquanto a ameaça séria que aquele eunuco vingativo representaria para mim e para Elão crescia em meu pensamento, eu ainda divertia as conjecturas com outras ideias.
   Pois uma vez Seraf, meu pupilo mais impetuoso, perguntou-me o que eu tinha a dizer sobre o sexo. Ele fugira por pouco de uma turba de fazendeiros revoltados que estimavam grandemente a virgindade de suas filhas. Ter se deitado com três de uma mesma família em uma única noite foi demais para o senso de decência local, de modo que Seraf fugiu de um estábulo de amores apenas com a calça e usando o chapéu de uma das moças.
   Mas sua pergunta eu respondi com orgulho, anoto-a: o que dizer sobre o sexo?

   Um pacto de almas e carnes, meu caro.