terça-feira, 31 de dezembro de 2013

::: Ânimo da Tempestade (parte um)


Jofric não era moço de igreja. A luz da janela entrava beneditina pela janela do seu quarto, mas as cortinas egípcias com votos a Ísis barravam o vento e inflavam-nas como velas cheias de um barco que não vai.
Pois ali naquele quarto ele escrevia, e fazia pretas páginas e mais páginas de seus diários, de seus escritos. Ele perdia-se em linhas retas, seu corpo serpenteava nas linhas da caligrafia perfeita. Por encomenda escrevera uma ou outra boa obra catequética. Cansara-se de ocultar nas mensagens suas críticas à igreja e ao clero local – nunca fora percebido. Ou se fora, fora igualmente ignorado. Escrevia sobre a fé apenas com a franqueza da encomenda e com a grandeza de seu talento.

Mas Margarite, de quem se via noivo desde sempre, só se cria bela sob o véu de ir rezar. Era por causa dos locais onde ela aceitava ser vista com ele que Jofric não deixara há muito de aparecer diante das velas debulhadas no altar. Ele não gostava daquele lacre de madeira que era a igreja da vila – uma confusão de retas e tábuas, brechas fechadas com cera e madeira lustrosa.

O que fazer, contudo, quando o destino quer unir um nefelibata que escreve de noite a uma nefelibata que reza? O jovem decidiu que aquiesceria por tempo indeterminado com essa mania da moça, tendo ele apenas indiferença e nenhum desprezo pela igreja e pela fé dela. Tudo o que queria – quando não estava devaneando na tinta – era vê-la.

Feita esta introdução cabível a quem não tem em mente, por sorte, aquelas imagens e pormenores que eu tenho, cabe agora citar que Março trouxera uma quantidade estranha de vento e de chuva. Raios tropeiros vinham de longe, riscando o céu com o pó da estrada e alguma luz do outro lado do vale. Os ventos eram desconhecidos por ali – arredios e rudes, eram como bêbados e mendigos, verdadeiros indesejáveis, mas quem poderia enxotá-los de lá?

E tão intensas eram essas tempestades que assolavam a região que as pessoas tinham de ocupar os ouvidos com outra coisa, caso contrário sucumbiam a uma profunda crise de medos, pavores inominados, um princípio insuspeito de loucura, um desprazer tamanho e visceral que as impingia aos mais desvairados e reprováveis dos comportamentos. Canglores de panelas lavadas, sinos maiores para as vacas que não eram deixadas em paz, crianças excitadas a seus brinquedos, cuidados esmerados com os vários porcos, tudo era válido para afastar dos tímpanos as batidas da chuva e as pancadas do trovão imperioso.

Acontece, nesse meio pernóstico, que nem tudo na vila era rural e dotado do barulho comum do campo e da lida pecuária, que bem podem ser aumentados até tornarem-se quase ensurdecedores. Como se fosse mais nobre, entre as casas longe do feno amontoado e da horta plantada o que ocupava os ouvidos sensíveis à tormenta era a música. Que os maestros da lavoura aumentassem o rufar de porcos roncadores e fizessem a mulher cantar alto o pilão! Ali, naquele recôndito urbano onde havia alvenaria, as casas tomavam-se de música.

Os mais pobres reuniam-se aos gordos bêbados que, velhos e ébrios, tocavam suas harmônicas na rua, sob os beirais das casas fustigadas pela água. Suas sanfonas, quando dentro das tavernas humildes, evocavam o bater forte das canecas em festa – mas tudo isso era não por alegria, mas por desespero. Era o gesto do pobre que, ao invés de sincero, fazia-se apotropaico, afastando uma má sorte e um desvario de razões que viera com aqueles ventos de longe.

Aqueles que não podiam com o barulho da chuva – quando esta era tão forte com trovão e rugido, tanto que nem os instrumentos roídos nem as canecas batendo a todo momento (até vazias) faziam possível esquecer precariamente o barulho da tempestade lá fora – estes punham-se a dançar. Nos primeiros dias em que essa chuva armava-se e arrasava as calmas, essa dança era animada, festejando a labuta adiada pelo péssimo tempo e o momento de festa. Mas com o passar dos dias, que tornavam-se mais ventosos e encharcados, essa dança foi virando quase que uma necessidade impudica, inegável e terrível. Era no bater dos pés, na concentração dos volteios, no vai e vem dos quadris que muita gente por ali conseguia realmente furtar-se ao pavor estremecedor que era aquele desfile de tempestades no céu.
               
           Bom, sendo assim, pavorosa, essa situação dos humildes, a situação dos pretensos humildes em suas casas de alvenaria e mobília não era tão diferente na essência, embora fosse muito mais aprazível à forma – tanto que me é mais inspiradora a descrição. Se por um lado gosto daquela lascívia inocente da dança e da festa no lugar pobre, no muquifo ou na choça, por outro lado tenho de abominar essas coisas que vez ou outra temos em tais locais. O que a torna melhor é poder aquiescer com a necessidade de mais cerveja para poder continuar por lá.

         Contudo, reconheço minha criatura como pertencente aos solares tórpidos, em cujas salas cheias de móveis e utensílios – mas vazias de gente ou calor – o som das tempestades era muito pior porque ecoava na vastidão de salões ornados e longos corredores cheios de quadros.

       Nessas casas ricas, contudo, a música também imperava. Menos intensa, porque o cravo com facilidade some diante do ronco dos céus. Era necessária uma coleção de finos músicos para acalmar os ânimos, mas eram poucos os tocadores de instrumento em cada casa, em cada família, de modo que o que podiam fazer era ficarem bem próximos à lareira e concentrados, em seu silêncio nada modesto, em escutar aquele pai que tocava oboé, ou a filha mais talentosa que dedilhava as teclas, ou os meninos que cantavam em coral, ou a aia bonita que sabia músicas de cor.

          Mas Jofric, nesse ínterim...
         Ah, o que dizer dele? Simpatizo com ele. Sei que simpatizava com ele antes mesmo de surgir em meus pensamentos. Quando o encontrei nas primeiras linhas de minha escrita, já sabia que era um querido conviva de outras datas. Não o creio bom amigo, até porque ele estranha-se com esse negócio de amigos e gente, mas é pessoa interessante. Gostaria de brindar com ele, mais de uma vez. Surpreende-me um tanto que Margarite goste tanto dele, pois poucas mulheres daquela vila deveriam conhecê-lo, tão pouco ele se expunha.

         Mas enfim, ele, neste ínterim de barulho sobre barulho, punha-se extasiado em sua janela do quarto da pensão e abria os braços para a chuva feroz. Ele regozijava-se com os trovões e alegrava-se com o vento. Não que aqui caiba uma metáfora de liberdade – ele já era livre pois amava e conseguia muito bem trancafiar-se sem ninguém – mas ele fazia isso por alegria intensa, senão por uma gratidão. O que ele amava mais que a escrita, quando não tinha inspiração nem para listas de compra e em se tratando de ofícios das mãos, era a música.

        Ouvia a mediocridade aprazível da orquestra local sempre que esta se punha na praça, normalmente antes ou depois da missa – e essa banda, com dois percursionistas, uma flautista, um clarinetista, dois sopradores de metais e um velho maestro não era menos querida por todos os outros que a escutavam dedicados.

          Por isso e mais, ao saber que a vila estava tomada por uma necessidade por música, simpatizava com todos. Também ele tinha na música um asilo habitual. Nela abrigava-se da falta de inspiração e da inquietude que a lonjura carola de Margarite impunha. Ao saber que todos abrigavam-se da chuva na música melhor do que sob os telhados, respeitava-os na admiração calada e imparcial, ainda que distante, de quem se identifica com muitos que antes eram ignorados sem problema.

       Mas a tempestade que ia e vinha todo santo dia também veio a incomodar Jofric, tirando-o de seu estado de espírito em regozijo. Por duas vezes ele conheceu o ânimo da tempestade, e narrarei porque ele teria razões de reconciliar-se de vez com o altar ou então afastar-se dele para sempre.

...narrarei na parte dois...

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

My Feet are Light

Ways I tread are always full of beauty.
Today, upon a corner of much-trodden grounds, I saw light filtering through dusking clouds and the flowers crowned the tre with sublunary grace. "There is some beauty here, of course. But the ways that go have more beauty and substance for me than the the ways that come. The going dust glimmers, the hanging dust is dull."


~~~

Os caminhos que percorro são cheios de beleza.
Hoje, na esquina de chão muito percorrido, vi luz através de nuvens anoitecedoras e flores coroando a árvore com graça sublunar. "Há beleza aqui, é claro. Mas os caminhos que me levam são mais belos que os caminhos que me trazem. Os pó que vai cintila, o que fica, perde cor."



sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

   Hoje, de repente, descobri que tinha tempo. Havia ganhado tempo. Tempo livre, para mim. Um presente tão pequeno, tão bom, tão singelo, igualado apenas pelo fato de ser algo tão breve, efêmero, fugaz. É ganhar um chocolate da alemoa, é entrar na sala gelada vindo da rua quente, é ouvir o sinal batendo na troca de aula.
   Projetado para ser bom, dura pouco.

   O que quero nesses tempos? O tipo de mulher que mais gosto - uma mulher com a decência de amar sem absolutamente nenhum limite.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

to Emily

Bliss is a work of countenance
On humility that myself informs -
I hide or I abstain in ensouled penance
as if petals worked the pierce of thorns.

And as solitude, unbound,
Moves me from me to sincerity,
In joyous silence do abound
the labors of one - not society.



Escrito há um tempo, mais de um ano, para a aniversariante de hoje, Emily Dickinson, que ajudou, talvez sem saber, a mudar minha vida também. Um pouco modificado.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

::: Repost - Renovar a Vida

i - Madrigal


Eu estava com outra - seria você?
Observávamos as garças de Março
sob a chuva no leito do Morava,
e quando as libélulas azuis, muitas,
pousavam no seu cabelo, eu e você
nos uníamos num singelo abraço,
e sua túnica de seda ruflava - eu dizia que te amava.

Quando os espíritos do rio célere
com os da chuva de inverno comungaram,
quando os gansos-bravos voavam para longe,
eu dormia com as carpas, sussurrava "espere-me".
E se os gelos às suas pálpebras incomodavam,
partíamos para longe - você me perguntou "aonde?"


ii - Commedia

E nos estuários pardacentos do Danúbio
vimos chorarem as bailarinas, concubinas,
e testemunhamos o afogamento das orquestras.
Era tão azul aquele cinza, lembro-me de alguém.
Será você? A luz da porta bate ao dia, e dúbio,
é assim que me vejo, e sigo seu vulto deitado nas cortinas,
reclinado qual neve que pesa nas florestas.

E desprezamos, um de cada vez, em tempo,
os banquetes do palácio imperial. Pudera!
O cisne e a ave do lago lindamente cantam
sem coleira ou tempero. Lembro-me disso como exemplo,
e quanto o médico virou monstro, desses que por aí erra,
com toda bondade você me aconselhou, os olhos amam.


iii - Seresta


E se de noite a vinha no choupo se enlaçava,
mais que depressa um ou outro murmurava:
"é o vento, que por rosas arrancadas chora."
Mas o dia sempre conseguiu vir e raiar,
e ao tocar com lábios a sua pele, jurava - te amava.
E se os sentidos privados são por hora,
digo hoje que são remorsos da demora.

Quando a pele começou a secar e fria,
os Urais estavam enrugados como o Verão.
Você chorava pela luz do dia e por nós.
Eu ofereci corrermos pela paragem de dia
e dormirmos com os trilhos (que um dia sonharão),
e como um cisne você reclina o pescoço - por nós.


iv - Balade


Assim, nos amamos mais e amamos mais tristes,
e no lado claro dos Alpes vimos as pastagens,
e no inverno escuro do Sena, mil imagens,
no doce sono do Nilo (cobra de vidro), miragens,
e nas velhas margens do Pó, algumas postagens.
Cansamo-nos, ainda amando. Criando coragem,
seguimos o vento de sal sem nenhuma bagagem.


v - Ode

Vimos os peixes que infartavam o Mississípi,
e ao Sul, um verso livre se afogou no Amazonas.
O uivo do coiote era como o choro do lobo,
As lágrimas da arara, a alegria do rouxinol.

A partir de então, no Novo Mundo era assim:
eu só escrevia em quatro versos, um quinto
só enquanto você me beijava. E no fundo, perguntava:
O que faz aqui, se no Morava você dizia que me amava?


vi - Eco

E a vida já se esvaía;
as rimas rareavam.
A luz da noite se perdia,

As novidades se espelhavam,
chorar o peito eu queria,
meus olhos diziam, te amavam


vini - Scene

E eis que o frio do Inverno.
E eis que acho - nada é eterno.


vinci - Verso

Gelo. Tudo pára.


ix - Verum

Vi um raio de Sol.
Muito longe.
Veio tão veloz,
veio tão rápido.
Eu que vou em direção a ele,
e do escuro já sinto sua voz.
Vamos brincar nos charcos do Morava!
Eu te amava, você me amava!
...
E a vida se renova.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Os Desencontros

Simples assim.

A água flui;
A rocha espera.

A onda quebra;
A praia dorme.

O vento corre;
A montanha cala.

O fogo consome;
A madeira sobe.

A terra seca;
A chuva cai.

A casa fica;
O morro vai.

A dança pára;
O chão permanece.

A cama acalma;
O lençol entristece.

O olho fecha;
A estrela brilha.

E o encontro acaba.
Os desencontros são.

domingo, 10 de novembro de 2013

Fama

   A necrológica da raça humana me espanta. De noite a mente singular daquele poeta me desperta e eu sou levado a pensar nessa coisa da morte na gente. E esse meu meu pensamento, da morte em vida, fica suspenso no ar.
   A necrológica está no nosso ímpeto diário, de quando guardamos a carteira a quando fazemos ou não nossas preces noturnas, pensando se as fazemos ou não.
   E a face do morto, um betume estranho que tome as feições de um rosto de carne como agourado por Lima Barreto, encerra sob os sulcos ou falhas pelo tempo cavados e ali deixados uma outra face que um dia foi vida.
   Talvez a face perdida de um mendigo feliz, talvez o rosto de um pintor. O rosto que assusta porque é feio, coitado, mas que alegra porque sabe ser só sorriso.

   "Que belos dentes tinha ele" dizem os da exumação, mas a necrológica das gentes é assim, pequenecedora, minimalista, dentária.
   Mas então a mente divaga, e se solta. Desassocia-se da vida e emparelha com a morte, e sabemos de fama ou herança. O que é história senão morte em vida?
   E o homem, nessa necrológica, pode não deixar um morto descansar. Dar paz a um indivíduo é esquecê-lo, irremediavelmente.
   Mas isso foge à necrológica, e a gente sem arte não vive; sem lembrança, seca; sem memória, murcha. E o morto assim vive outra vez, no espaço assombrado de memórias ou retratos, até que me deito e durmo.
   E e é necrológica outra vez.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

"Nervos D'Oiro", de Florbela Espanca


Meus nervos, guizos de oiro a tilintar
Cantam-me n'alma a estranha sinfonia
Da volúpia, da mágoa e da alegria,
Que me faz rir e que me faz chorar!

Em meu corpo fremente, sem cessar,
Agito os guizos de oiro da folia!
A Quimera, a Loucura, a Fantasia,
Num rubro turbilhão sinto-As passar!

O coração, numa imperial oferta.
Ergo-o ao alto! E, sobre a minha mão,
É uma rosa de púrpura, entreaberta!

E em mim, dentro de mim, vibram dispersos,
Meus nervos de oiro, esplêndidos, que são
Toda a Arte suprema dos meus versos!


~Charneca em Flor

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

31 Outubro

A Beltaine of Bliss for us here, where Northmen called it South, where Lights are lit in the bonfires and in the hearts of men and beasts.








e um pouco de clássico, para quem lembre, onde é o frio do Samhaim!


domingo, 27 de outubro de 2013

E é Mentira

Se fosse um fato - coisa que não é - a mentira não seria sinônimo verdadeiro daquilo que é falso. Seria a aceitação admissível de uma vergonha dar carnes, que têm sentido, e de uma falha das mentes, que têm razão.
Mas não é um fato. É engodo de engodo, é uma forma de manter orgulho, é um jeito de não sofrer. É mentira - é falta daquela vileza humilde, daquela única forma de orgulho simplório. É uma hipótese, parca teoria, empirismo abstrato que sequer reconhece razão. É uma forma de distorcer um crime, um jeito de não se envergonhar. É mentira.
Como não é fato, a mentira não se constrói. A mentira não impõe. A mentira não se aceita. A mentira apenas é um jeito, é uma forma, é um ato de não perceber. De não ver. É um jeito, é uma forma, de não sofrer.




Arte de Michael Cheval (http://chevalfineart.com/)

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Diaries - Dreams

#13
Mother hen gathered her little birds, all under her wings;
Then it was a crow, majestic and inky, and it hoarded pieces of hearts torn to shreds, gleaming tears glistening its coarse feathers. All that bird harbored were shards of broken dreams.

#34
I was stalked by the streets by no man nor monster or fiend - The ghosts of children that will never come gave my steps a chase, each beseeching me to find their mothers and give them substance.

#23
I had to walk all the long way to my job. Here and there I had to stop to pick up a bus at the human stop.

#10
The last speck of you left my veins and I frenzied once more. I chased down the streets that maiden thug that would give me another shot of you, but Hope, that drug lady, was nowhere to be found.

#41
I picked you up by the hands and we run down the avenue. Bombs fell all around us, each building collapsing beautifully. We laughed as we darted away from the crumbling debris and made love on the downtown ruins.The city was blown to ashes and we were on fire.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Segundo Luto

Um segundo luto, amigos, guardemos.
É pálida a tez no caixão reclinada. Perdeu o calor, lastro do sangue, e perde a cor, valor da pele.

Um segundo luto, meus caros, soframos.
É quieta a boca velória. Sem palavras e assim, sem ter o que dizer, no silêncio a morte vive.

Um segundo luto, queridos, observemos.
É certa a rigidez do falecimento. Conformada, a dureza de um morto e de suas testemunhas.

Um segundo luto, enfim, vivamos.
É calma a face na terra indiferente. No silêncio o grito se explica, no intuito de viver a vida morre.

Um segundo luto, amigos, lutemos.

domingo, 6 de outubro de 2013

de Viviane Mosé

A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos.

Abscessos, tumores, nódulos, pedras são palavras calcificadas,

Poemas sem vazão.

Mesmo cravos pretos, espinhas e cabelo encravado.

Prisão de ventre poderia um dia ter sido poema. Mas não.

Pessoas às vezes adoecem da razão

De gostar de palavra presa.

Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima.

Lágrima é dor derretida. Dor endurecida é tumor.

Lágrima é alegria derretida. Alegria endurecida é tumor.

Lágrima é raiva derretida. Raiva endurecida é tumor.

Lágrima é pessoa derretida. Pessoa endurecida é tumor.

Tempo endurecido é tumor. Tempo derretido é poema.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Alma Eclipsada

Comecei com Alma Entregue. Teve Alma Confessa. Hoje é tudo diferente, tudo.





Sol de meia-noite, que foi verão no meu peito.

Até pouco parece muito pra quem se não sabe pedir sol, ganha chuva, e quer chuva se faz sol. Não se pede mais sol quando chove, nem menos sol se é meia-noite.

Peço é nada, que pedir meu peito não sabe. Suplicar é algo que desconhece. Quer; E de querer, vivo se mantém. Deseja; E de desejar tira sustento.

Se abre de noite como flor baldia e mariposa ilustrada, concha aluada ou ave corujenta. E se banha no sol, se for noite.

" Necrológio dos desiludidos do amor", Carlos Drummond de Andrade

Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.
Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.
Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia.
Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).
Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles. 







segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Dracma I

E nesse diário inconstante da minha vida registro apenas os dias que pelos quais eu passo, não os dias que passam por mim.




Dracma (i)

Levem-me os anjos porque quero paz.
Vê que não peço silêncio - só quero paz.
Levem-me os anjos porque preciso dormir.
Vê que nem quero rir - só preciso dormir.
Levem-me os anjos por que assim quero.
Vê que silêncio e riso não são Paz.
Vê que eu preciso dormir.
Em paz.



quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Rutila

E as mentes parecidas chamam-se à distância: São iguais em sua singularidade.
Encontram-se pela realidade; confirmam-se na verdade; perdem-se na eternidade.

E as mentes parecidas chocam-se na dança: São sinceras dúvidas de acaso.
Entendem-se na parceria; Confortam-se em alegria;

E riem - à revelia.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

"Rústica", Francisca Júlia


Da casinha, em que vive, o reboco alvacento
Reflete o ribeirão na água clara e sonora.
Este é o ninho feliz e obscuro em que ela mora;
Além, o seu quintal, este, o seu aposento.

Vem do campo, a correr; e úmida do relento,
Toda ela, fresca do ar, tanto aroma evapora
Que parece trazer consigo, lá de fora,
Na desordem da roupa e do cabelo, o vento...

E senta-se. Compõe as roupas. Olha em torno
Com seus olhos azuis onde a inocência boia;
Nessa meia penumbra e nesse ambiente morno,

Pegando da costura à luz da claraboia,
Põe na ponta do dedo em feitio de adorno,
O seu lindo dedal com pretensão de joia.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Panacea

Like a hound sniffing for a lost owner, so was I searching for hope on evertrod ways.

Or like a bird, peeking at the most natural and gentle places, or like a vagabond leaf idly taken and moved by a second wind.

But now I resemble more frankly a vampire in search of blood warmth, or a wolf craving for flesh, for what once was a natural and spiritual need is now twisted, warped into a physical and low desire.

But now I’m in a broken frame and I’ve put myself clinging to the tips of the last wires of salvation, and the best of essences or the foulest of poisons can’t linger on a broken jar – the essence and the poison seep alike.

Of all things I wish nowadays, and if looking back I wished for love and joy, for peace and serenity, all that I want the most, for now, is feeling. A rush of blood, a quickening sequence of pulses, a beat that can’t fade in a moment. Only to feel again.


And since a remedy can’t be holden by a broken cup, and since the cracks are clogging with venom, what fate could be that of the sweetest panacea should it seep from an infected jar, jumping from poisonous cracks and flowing away?


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Eu não estou me curando em um hospital - Estou sedado no manicômio.
Meu riso não é de terapias, é da memória partida a tratamentos de choque.
O silêncio não vem da conversa e nem da música que sai pela janela da ala 3; é a mente dobrada pelo entorpecimento.

Mas ai desse tempo, dessa trama estranha que na insensatez dos acasos prendeu fogo entre paredes de gelo, atou o raio com elos de papel, trancou o vendaval nos laços de vime!






"Não sofro de insanidade. Eu aproveito cada segundo dela." Cascavel

terça-feira, 27 de agosto de 2013

As Rosas e o Punhal, Crônica II, Parte II

Preâmbulo
Não penses mal de mim. Sei o que me disseram nossos corpos. A nudez de uma mulher esconde muito mais do que mostra. Pobre do cego que ao querer ver uma mulher nua vê apenas uma mulher sem trajes. Sim, cego é quem, vendo o corpo desnudo, apenas um corpo desnudo vê. Expõe-se muito mais do que pele no ato da mulher despir-se ou ser despida. Poucos, contudo, conseguem entender que simplesmente não existe essa possibilidade de se ver apenas uma mulher sem roupas. É como o doce veneno da vespa-do-vinho: espera-se um trago doce, uma mera picada que estimule a pele e alfinete os sentidos... quando na verdade toma-se por veias uma ferida viva que serpenteia na carne, e por sangue um veneno inescapável que tinge as fibras com nova intriga.
– Carta com destinatário e remetente desconhecidos, encontrada por Sarão de Seraf

S
ão tantas as vidas que se pode viver em uma única e longa vida que as conclusões mais tácitas me falham na hora de citar verdades ou pronunciar aquelas conclusões fatídicas ao fim de um relato que, em sua essência, contém algo tão visto e revisto que exclui o estranhamento.
   Sim... Mesmo ouvindo mil vezes ao longo das vidas dentro de uma vida relatos de dor, relatos de esperança ou desconsolo, histórias de amor ou empresas a pano, tudo o que penso ser certo para falar é que o acaso governa as idas e vindas, despedindo-se de nós nas saídas, mas recebendo-nos em seus braços nas chegadas.
   Sim, porque se por vezes formou-se em minha mente repetir um conselho ao escutar um relato familiar – como uma esperança fatigada, um amor que vai mal, uma doença próxima – tudo o que de fato fiz foi dizer do acaso, foi dizer da unicidade das coisas que, mesmo repetidas em seu desenrolar, são essencialmente únicas. É saber que a mesma estrada leva para infinitos lugares.

   E lá estávamos Sarão e eu, agachados atrás de uma pedra vigiando o portão de uma vila frugal na Marca dos Reis. “Era apenas mais uma aventura”, está na mente de alguns. “Só mais uma empreitada de um bruxo curioso”, figura na mente de outros. Verdade, mais uma aventura para quem muitas aventuras teve; mais uma empreitada para quem muitos caminhos andou – e como muitos caminhos andei, quase todos em aventura, posso dizer com a veemência que não ofende o papel ou a tinta que, de fato, caminhos idênticos levam a destinos pertinentes, pois a igualdade das coisas é que são todas elas únicas.

   Noite alta, uma carroça coberta com panos brancos chegou ao portão de Varuzal. Tinha em seus panos o talhe luminoso da Igreja de Selmar, e uma escolta montada fazia a segurança da carroça.
   “Problemas com a morte.” Disse Serão “Chamaram o clero, não?”

   “Provavelmente, mas aquela carroça pesa por causa de mais coisas além de um homem da Igreja. Reconhece os glifos na base do pano?”

   “Não. Se se trata da Igreja, não deve ter coisas de muito interesse.”

   “Livros. O carroção está trazendo livros. E para que uma escolta montada faça a segurança deles, só podem ser cópias manuscritas do Livro Selmarino.” E aqui referia-me ao livro que continha compilações, cantos e profecias da Igreja de Selmar, a mais antiga das teocracias e mais poderosa dentre estas. Enquanto para tudo o mais da escrita já usavam a prensa, para copiar seu livro sagrado apenas as mãos de copistas eram aceitas. Entre reinos que seguiam a Igreja, cópias do Livro eram parte do comércio, valendo mais do que ouro, e em caso de guerra os acordos de paz ou tributos aos vencedores envolviam livros manuscritos em posse dos locais.

   Serão pareceu, pelas minhas letras, indiferente diante da Igreja de Selmar, o homem-sol, mas na verdade ele é devoto de algumas coisas da Igreja. Ele sabia de minha indiferença, contudo, e minha descrendice no culto, e tentava esconder de mim suas orações. Mas fascina-me em demasia a devoção do homem às coisas que não pode ver ou entender, e ali residem perigo e beleza.

   Era hora de entrar. Era arriscado tentar ludibriar um clérigo Selmarino com a Arte, pois sua devoção à luz cegante os faz atentos ao sobrenatural. Mas não era eu um aprendiz de conjuras básicas, tampouco Mago comum. Não sou reconhecido quando não quero ser reconhecido, pois minha vontade é capaz de superar a curiosidade e a indagação.
   Minha mente concentrou-se na imagem da guarda da carroça. Mais especificamente, nos soldados. Suas mentes estavam ligadas à grande fé, e desse modo estavam em sintonia com a mente de seu protegido, um clérigo que eu sabia estar dentro da carroça. Não eram eles meros devotos piegas, ou carolas ostentadores. Eram algum tipo de elite, e estavam com suas mentes integradas ao Cântico, mesmo que estivessem cansados.
   Mas se os maiores devotos de Selmar, através de cânticos, mantras e doutrinação podiam unir seus subconscientes em uma grande e única mente com vários corpos, o Cântico, nós praticantes da Arte tínhamos maior entendimento dessas coisas da mente. A clareza de uma mente individual, por exemplo, me fez capaz de observar as mentes daqueles homens sem que eles imaginassem que eu o fazia.

   E estavam preparados para se proteger da maldade e de sortilégios. Haviam recitado preces para tal ao longo de sua viagem. Se sabiam de algum mal que se abatia sobre a região, não saberia dizer.
   Aconteceu que eu em demorei em vasculhar as mentes dos soldados, e assim fiquei desatento ao clérigo. Mas o clérigo não ficou desatento a mim.

   O pano da carroça foi afastado, e no lugar de uma série de símbolos votivos surgiu a face pintada de branco de uma enviada da Igreja. Ela tinha no rosto os símbolos vermelhos da fé Selmarina, e usava o capuz e véu. Estava vendada, de modo que não era uma monja comum.
Seus olhos vendados e ignorantes da luz e das cores fitaram-me diretamente. Seu olhar elusivo pousara em mim.

   “Ali está Varyn, o Agoureiro. Porta-voz dos Vários Caminhos. Mas por que assim, escondido atrás de uma pedra vulgar?”

   A mulher fora certeira em sua visão. Se percebeu que eu também estivera perscrutando os pensamentos alheios, não cheguei a saber. Eu deixei a sombra da pedra e coloquei-me sob a luz das lâmpadas da carroça, da qual fiquei distante por causa da compridez das lanças dos soldados que se puseram entre mim e ela.
   “Eu, de fato, sou Varyn. Busco entrar em Varuzal, mas tal entrada foi-me negada. Falo com quem, que sei é do clero?”

   “Sou Viatra, e eu vejo pela Luz da Profecia. Sou devota de Selmar, o homem-sol, aquele sangrou luz no momento de trevas e salvou nossa visão da escuridão. Queres entrar, Varyn, feiticeiro de grandes segredos. Mas o que há aqui em Varuzal não diz respeito aos olhos e mãos do Conselho, nem é da pertinência da Convocação dos Vários Caminhos. A entrada foilhe negada, e negada continuará a ser. Não há mais nada aqui para ser visto, pois a luz que trago, a da Verdade, oculta o que há dos olhos dos descrentes. Nada poderás ver enquanto estivermos aqui, e de nada mais precisas saber.” E, voltando-se para o portão da vila, que se abrira, proferiu ordens “Avante, comboio. Para dentro com a carroça. Somos um raio de luz pura nesta noite de tormento, tão escura.”


   E aquela parada de cavalos brancos, cavalgados por homens em trajes brancos e armaduras prateadas, elmos altos com plumas alvas, escoltando uma carroça puxada por bois níveos sumiu atrás das sombras quadradas e toscas do portão de Varuzal.
   “Entro nestas ruas nem que para isso eu mesmo bote abaixo o portão!” Disse para mim mesmo. Foi quando Sarão me alcançou.

   “E agora, que fazemos?” e ele também viu o vigia ignorar-nos mais uma vez.


   “Sei que ainda é lua nova” Disse-lhe eu, ainda estático no ato de postar-se indignado diante do portão fechado, da guarita muda e tendo a lança matadora em uma das mãos “Mas vamos entrar do seu jeito.”

sábado, 24 de agosto de 2013

de Clarissa Castella

Eu me perdi quando encontrei
mãos feitas para vendar,
quando segui os passos 
de quem não soube guiar,
quando me atirei do abismo
acreditando nadar num mar

E enquanto caía eu via despedaçar
no vento o desespero de outrora,
a aurora da vida sufocar na guerra
o que em terra era o alento de quem chora,
pois é na frieza da brisa que floresce
do pranto a beleza do agora

é preciso enlouquecer e
é também preciso elucidar
quando o corte da adaga
é tão certo e preciso que
te faz renascer de tanto sangrar.

Tão certo é aceitar que
a cegueira que o coração
nos faz enxergar,
não diferencia o segundo
do eterno que cabe
ao tempo decidir passar.

Tão preciso é saber que
apesar de tanta fratura
exposta na esquina, há cura
pra calcificar o estrago do chumbo
grosso, pesado, disparado ao lado,
precisa-se amar.



Arte de Lorenzo Durán

sábado, 17 de agosto de 2013

"Infinita Mente", de Carla R Nunes e Juliano R Maciel


- Amada, venha um pouco, porque eu já não tenho mais condições de ir.
Já fui tantas vezes ao teu encontro que perdi o caminho.
Cansei de ser a Penélope dessa Odisseia.
É muito mar pra pouco vento, muito caminho pra pouco pé.

Chega de fazer da bossa; fossa. É muita emenda pra pouco soneto.
Muita rima pra pouco som, pouca corda pra muita mão.
Muita saudade com muita vontade - tudo demais pra muito em vão.
É pouco Cristo pra tanto sermão.
Muita boca faminta pra pouco pão.

E cadê a flor na tua mão, que só vejo espinhos? 
E a tua roupa de seda, por que é de estopa?
E o teu batom, que já não te pinta a boca?
E o teu perfume, por que não agrada o ar?

Algum mel te adoça a amargura da boca? Algum riso te deixa mais leve a lembrar?
Quem cura tua alma doente? Teu corpo carente? Quem? 
Quem, no frio, te deixa mais quente? 
Amada, quem não diz a verdade mente.
Somente mente.


sábado, 10 de agosto de 2013

On will and ill

O If I could count how many times my hopes have crumbled - 
but too often it seems the host knows of ruin,
and on ruins a heart can linger.
(though deserted by feeling)

In silence the catacomb remains -
though the casket may be fine,
gone is every bone.

If I can't keep track of the troubles
that get past through me,
The troubles keep the track for me.


domingo, 4 de agosto de 2013

E nesses dias que passam, o que somos senão uma confusão de esperanças e ideias, de palavras e de sonhos, de sentidos e de emoções?
E se a nossa pele - essa expectativa - se excede e nos deixa, criando vidas próprias? E se nosso som - esse incauto - nos enlouquece e nós deixamos de ser?

sábado, 3 de agosto de 2013

"Unhandle me!" she said,
And he's still puzzled by this.
Then came the red and white roses,
and with them there came thorns,
And black-string hopes - a flute and a lute.
"Unmask me!" he guessed,
and he's still moved by this.
Then at times he goes flowing,
at others, stalled, he stands still.
And he dreams and he wakes -
frightened! deluded! - unhandled.

29Jul13

terça-feira, 30 de julho de 2013

"Silêncios", de Mário Quintana

Em homenagem ao digníssimo Mário Quintana, poeta brasileiro, que hoje completa mais um aniversário, em silêncio.

Silêncios


Há um silêncio de antes de abrir-se um telegrama
[urgente
há um silêncio de um primeiro olhar de desejo
há um silêncio trêmulo de teias ao apanhar uma
[mosca
e
o silêncio de uma lápide que ninguém lê.




segunda-feira, 29 de julho de 2013

::: Wisdom

Them candles can't avail me this time.
This time I'm consigned to doubts
And little lights can't help me this time.

All the omens turn obscure,
And wherever I turn my eyes to
What I see turns obscure.

Glimmers of reason visit me then and now,
And now I'm thrashed by questions
And by meanings, confused then and now.

My sight is feeble and so is my dream,
My dream, one of obscurity -
My words can't tell the color of my dream.

Hope tainted my minutes and hours
And hours pass with little relief;
I numb myself for seconds and hours.

I can think of many things new,
Many ways out of this cloudform maze,
But out of it my wisdom won't follow...


The soul is ahunt, it beckons -
It beckons peril and incites desire.
I notice someone out - it beckons.



quinta-feira, 25 de julho de 2013

Dia do Escritor

Memorial

Ia falar de bocas e de olhos, de seios e de cabelos,
mas sinto o meu cenho pesado, há muito em minha mente.
Há tanto, tanto...

Eu comentaria dos dias, das idas e das vindas,
de minhas folgas insepultas e minha correria sem vergonha.
Mas há tanto, tanto...

E falaria de dores boas de se doer, ou de amores,
que são sempre, sempre bons de se sofrer,
Mas há tanto, há tanto..

Portanto há tanto
Por tanto...
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Há quem faça das palavras suas prostitutas. Eu não. Jamais conseguiria gritar com elas, escravizá-las, oprimi-las, ofendê-las. Não exploro elas, elas me exploram.

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(THE LARCH!)

E em comemoração a mais um dia do escritor, segue um conto de Machado de Assis, mestre de letras, que com este impressionou pessoas e momentos.



UNS BRAÇOS


Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.
- Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!
- Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!
D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.
Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.
Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.
Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.
Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.
Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil coisas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga.
Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, - ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória.
- Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.
 Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde, jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.
- Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais.
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.
- Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.
- Não tenho nada.
- Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...
E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: - vadio, e o côvado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.
D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer.
Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas.
 Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.
- Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.
 Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.
 D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.
 A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.
 Um domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo, - estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.
 Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.
 É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal.
 Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude.
 D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dois, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. Uma criança! disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.
- Uma criança!
E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, - dormir e talvez sonhar.
Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, - ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.
Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio.
 Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:
- Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.
- Sim, senhor. A Sra. D. Severina...
- Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela.
Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra coisa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:
- E foi um sonho! um simples sonho!