domingo, 20 de setembro de 2009

Um conto budista

Diz a lenda que sobre aquela ponte, em um dia de primavera, passavam um monge idoso e seus discípulos jovens. Enquanto o mestre contemplava as águas rasas e de correnteza forte, percebeu um pequeno escorpião tentando inutilmente manter-se fora da água agarrando-se às pedras.
O mestre, compadecido da pequena criatura, correu até a margem do rio e entrou na água e conseguiu tirar o escorpião de lá. Mas no caminho para a margem, o escorpião, assutado, picou o dedo do mestre, que por instinto e resposta à dor acabou largando o escorpião no rio.

Sem pensar duas vezes, o venerável correu até a margem e apanhou um graveto, voltou para o rio e, com esforço, conseguiu fazer o escorpião subir no graveto e assim tirou-o da água e levou-o em segurança até a margem seca.
Assim que voltou para junto de seus discípulos, que a tudo viram, um dos jovens perguntou:
"Mestre, não entendemos. Por que se esforçou tanto para salvar um animal que picou a única mão que o ajudou?"

O mestre, sorrindo enquanto retomava a marcha, disse para os jovens:
"O escorpião agiu de acordo com a natureza dele. Eu agi de acordo com a minha."

domingo, 13 de setembro de 2009

A Foice dos Deuses

Acho que as pessoas constroem pirâmides enquanto vivem. Elas colocam algo no topo e todo o resto serve de base. Há quem coloque seus princípios, os princípios de outros, o trabalho, a família, o amor, o dinheiro, o sexo, o poder, a tristeza, a loucura, as aparências... O que você coloca acima de tudo? Seu amor por um ser superior? Suas contas atrasadas? Seu sábado à noite?

Hoje há tantas coisas que nos diminuem... Somos números nas estatísticas, cálculos de setor no mercado, consumidores pro comércio, fiéis para a igreja, eleitores (otários) para os políticos, enfim, somos muito pouco para os outros. Hoje temos mania de reduzir as pessoas, torná-las mais simples para que caibam em planos e cálculos e tabelas.

Não sou tão fã do Nietzche, mas amargamente reconheço que ele está certo quando diz que a sociedade degenera o homem. Há espaço para os fracos crescerem e para os fortes diminuírem, mas ao invés de haver igualdade e condições para todos, como em um grupo natural, nós pervertemos as leis naturais e as levamos aos extremos: Há o lobo alfa e o lobo ômega de um bando, enquanto na sociedade humana há os líderes mundiais e os párias. Nenhum ômega sofre tanto em um bando quanto um marginal ou miserável na nossa sociedade gloriosa. Nenhuma crueldade é suportada entre os lobos da mesma maneira que um homem é capaz de infligir a outro. "O homem é o lobo do homem", como disse Plauto.

Nenhum animal é tão perigoso para outro animal quanto um homem é para o outro. Nenhum caçador é tão cruel com sua presa e nenhuma predação ou competição são tão torpes. E ainda assim aceitamos viver nessas condições como se não houvesse forma de mudar.
Não sou niilista, mas também não sou sonhador o suficiente para acreditar que uma idéia aqui e acolá pode fazer a diferença e mudar toda uma sociedade. Isso tudo já se tornou maior que nós, nos perdemos em um labirinto que construímos e volta-e-meia reformamos.
Por isso acredito que o "cada um no seu quadrado" tem um lado positivo. Melhor cuidar da pirâmide do que do labirinto.

"Melhor viver um dia como o tigre do que cem anos como o cordeiro.", já diz o Bushido.

sábado, 5 de setembro de 2009

::: B de Brígida

O amor vence tudo, dizem os brasileiros, porque Amor omnia vincit, diziam os romanos.

::: B de Brigid

Brígida, Brigid, Brígite, enfim, A Exaltada.
Os celtas antigos não costumavam ligar os deuses a aspectos naturais/sociais especiais.
Enquanto, por exemplo, os gregos e os romanos tinham deuses para o céu, para a chuva, para o fogo, para a guerra, etc., os deuses célticos não regiam especificamente algum elemento natural amplo. A maioria estava ligada à terra em que era venerado, havia deuses para cada rio, para cada bosque; mas algumas dessas deidades tornaram-se pan-célticas, sendo veneradas por praticamente todas as numerosas tribos celtas da Idade Antiga, e apadrinhando terras inteiras, clãs numerosos ou ofícios importantes.

É o caso de Brigid, a filha de Dagda, o Bom, com uma poetisa. Ela tinha duas irmãs, também chamadas de Brigid, e as três são veneradas como aspectos únicos de uma mesma deidade.
Brigid, dama da chama eterna, é a protetora dos artesãos, sobretudo os ferreiros. Ela é a anciã, a mais velha, aquela que tempera o aço, aquela que alimenta a forja.
Brigid, a inspiradora, é a protetora dos bardos e poetas. Ela também está ligada à divina chama, pois seu fogo é a faísca que incendeia as mentes dos poetas.
Brigid, a curandeira, é aquela que fornece aconchego e asilo. Seu fogo é a fogueira do fim do inverno, ao redor dela reunem-se aqueles que esperam o fim do inverno e presenteiam-se com tempo para sonhar com a primavera.

Brigid, a Deusa da Chama Tríplice, é honrada pelo festival de Imbolc, ou Imolc, hoje um dos Sabbats dos Wicca e alguns outros grupos neo-pagãos. No Imbolc do hemisfério norte as noites vão ficando menos longas e chega a hora de planejar o que será feito durante a primavera. Os fantasmas da fome e do frio ainda não partiram, mas o sol já volta a brilhar mais tempo.

Brigid era tão famosa no mundo celta que tornou-se conhecida em diversas tribos. Os romanos associaram-na à Minerva, que por sua vez havia sido associada a Palas Atena, a deusa grega da sabedoria e da estratégia. E, mais do que isso, Brigid foi tão estimada pela humanidade que ela resistiu a uma mudança radical: Ela é, para muitos, Santa Brígida de Kildare, uma das Santas Padroeiras da Irlanda. Foi uma das tantas figuras pagãs que encontraram culto na emergência do Cristianismo.

Brigid é a abundância que vêm após a provação. É sonhar com a colheita enquanto ainda é inverno, é ver pronta a ferramenta enquanto o aço ainda está quente e disforme, é ouvir a música pronta enquanto ainda se acertam as primeiras notas. Parecemos estar esquecendo disso, nessa sociedade hedonista que nutrimos hoje. Usamos propagandas e subterfúgios para esquecer o inverno e não encarar as noites mais longas, enquanto queremos sempre ter ao alcance das mãos o que nos traz aconchego.

O segredo para se conseguir um bom texto (entre os outros mil!) é cortar o que ficou ruim, trocar partes inteiras de lugar, descartar o que é bom mas não se encaixa. Nem todo pedaço de ferro aguenta o peso do martelo ou a dureza da bigorna e acaba virando refugo. E, logicamente, a cura só existe por causa da doença.
Ouvimos falar dos nossos amados políticos roubando milhões, mas e nós? Nós, que votamos (deveríamos votas) neles, somos diferentes nesse ponto? Podemos não roubar rios de dinheiro, mas podemos dizer que em momento algum estamos esperando uma recompensa sem termos nos esforçado de verdade? Quantas vezes esperamos um milagre ao invés de agir? Deus não faz o que você tem que fazer, como li uma vez.

Os antigos pagãos sonhavam com as promessas de Brigid enquanto ainda estavam cercados pelo frio do inverno. A única garantia que tinham era o calor da fogueira e o brilho cada vez mais presente do sol. Ainda assim, sonhavam.
Talvez já estejamos escravos de nossos sonhos: esperando uma mudança que fará tudo melhor porque não mais nos acreditamos capazes de lutar por nossa própria conta.

Por Brigid, que eu não seja assim. Que eu não seja o verso cortado, que eu não seja o refugo da forja, que eu não seja a doença sem cura. Que o fogo da Exaltada nos ilumine e aqueça, mas que sejamos todos dignos de sua proteção e compaixão. Filha do Bem e da Arte, ela nos abençoa. Que seu amor cure nossos olhos, pois temo que chegará o dia em que enfim perceberemos que já faz tempo que não temos mais olhos para enxergar.