domingo, 30 de agosto de 2009

Entre Tu e Você

AINDA em processo de lapidação, como diria o bom Bilac


Entre Tu e Voce

Doce flor de meu Érebo frio,
Há de te abrires sob outra luz?
Não te mostro douraro brio,
Mas pelo verde ouro tu te seduz?

Hah! Quem sou eu para julgar-te?
Creio que o primeiro pecado foi meu.
Teu rosto gritou-me em disparate:
"De beber do meu néctar esqueceu?"

Não esqueci, fragrante flor,
só não fui abelha saqueadora;
Mas caso bem pensar-me for,
dispensa: fui cigarra zombadora.

Abandonei você aos ventos
Enquanto eu desfiava roca
Lê o que para ti escrevi na língua secreta que inventamos:
"There should be no reasons, never. And yet, there are many. Shall them all fall silent? No! William Blake told me it can be loud as the loudest cry!"

Meu escárnio tem meu sabor.
Ele é o espelho do teu sorriso.
Deixa-me frio esse teu calor
E Minha loucura te faz juízo.

Assim, lê nessas linhas amor não,
Enxergue só despeito, desamparo,
Que se amanhã vocês lamentarão,
Perco dourado brio que me é caro.
-----------------------------------

foi-se a métrica, ficou a preguiça... Desculpe, Bilac!

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

::: É inevitável. Uma Série

QUANTAS coisas são inevitáveis ao longo de um dia?
Inevitáveis de seu ouvir, inevitáves de se ver, inevitáveis de se pensar, às vezes inevitáveis de se dizer...

Hoje, em um dos sete ônibus de todo dia, vinha quieto no meu canto após sair do trabalho. Na minha frente estava sentado um estudante de curso técnico, e ele por sua vez estava de frente para dois estudantes de ensino médio, creio eu. Sei que uma hora eu captei o assunto do mais velho:
"...bichice! Eu na quinta série já tinha ficado com uma guria da sexta. Na sexta série eu fiquei com uma do terceiro ano!"

Parte inevitável:
Contive minha língua, mas não pude sufocar no pensamento o "P...ut@ m³rd@!!!". E coloquei a cabeça entre as mãos pra não deixá-la mover-se violentamente em gesto de negação à realidade.

Inevitável.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

::: Enquanto isso

Sem erratas por enquanto.
Comentando algo que me aconteceu hoje:
Trabalho para a Secretaria da Fazenda de Joinville realizando um trabalho a campo. É inevitável, na cabeça de algumas pessoas, que elas façam a associação entre minha figura e o governo do atual prefeito. Uma cidadã me parou na rua e já foi disparando: "Isso é coisa do prefeito né? Aproveita bastante meu filho, mame bastante na prefeitura." E enquanto se afastava, acrescentou "Eu concordo com voces! Aproveite!" e com aquele risinho satânico da trapaça, se afastou.

Como mudar o Brasil se o Brasil não muda?

sábado, 22 de agosto de 2009

A fatídica "Mist Leben"


Mist (do alemão) traduzido para o inglês = Crap! Leben (Idem) traduzido para o português = Vida
::: Vida de Crap! :::

HÁ relatos e indícios históricos da Vida de Merda ao longo da história humana. Alguns historiadores acreditam que ela começou quando o Homo neanderthalis encontrou o Homo sapiens e percebeu que sua extinção estava próxima.
Há, contudo, teóricos místicos que acreditam que a Vida de Merda, tal como a astrologia, a matemática, a engenharia, a alquimia e a construção de bicicletas, são na verdade heranças de uma cultura anciã que sumiu com a mítica Atlântida. Segundo estes teóricos, as inscrições na Tábua de Esmeralda comprovam que a frase "Vida de Merda" fora ouvida no velho dialeto atlante no exato momento em que o continente desaparecido começou a afundar.

Sabe-se, por outro lado, que com o sumiço de Atlântida a Vida de Merda não sumiu do seio das civilizações humanas. Hieróglifos nas pirâmedes mostram que durante a primeira invasão hicsa, os egípcios mobilizaram um vasto exército para combater os invasores (de novo). Para sua surpresa, os hicsos sabiam que os egípcios consideravam o gato sagrado e que matar um gato era garantia de má sorte em vida e danação na morte. Os hicsos desceram de suas carruagens de guerra trazendo a lança em uma das maos e um gato na outra, usando-o como escudo. Os soldados do faraó teriam largado as armas no chão, e junto com seu soberano entoaram o canto "Vida de Merda".
Após a dominação de estrangeiros sobre o Egito (de novo), a Vida de Merda ganhou o mundo. Ela foi ouvida durante as invasões assírias por todo o Oriente Médio. É importante mencionar como a Vida de Merda se espalhou para os quatro ventos: Na construção da torre de Babel, as pessoas teriam começado a falar línguas diferentes. Isso transformou radicalmente a Vida de Merda, conferindo a ela um caráter global e um escopo sobre várias línguas e dialetos.

A pandemia de má-sorte assolou a humanidade. A Vida de Merda brotava dos lábios. ALguns fatos notáveis durante a Idade Antiga:
- Após a batalha de Maratona, o corredor grego enviado para dar a notícia da vitória aos seus conterrâneos teria morrido assim que caiu diante dos portões da cidade e gritou "Vitória!". Porém, alguns vigias perto do portão da cidade teriam escutado "Vida de Merdaaa..." como suas últimas palavras. Alguns historiadores refutam tal relato.

- Os romanos começaram a invadir a Gália, antiga França. O imperador Jílio César chegou bombando e detonou tudo e todos, mas Vercingetórix reuniu a resistência rebelde (3 R's da invasão: Reunir, Resistir, Rir diante da possibilidade de vitória contra as legiões romanas). Porém, durante a resistência, uma tribo local perdeu e todos os homens foram enfileirados para terem suas mãos cortadas como represália. Um bardo gaulês teria escrito o poema "As mil mãos cortadas e a Vida de Merda", tal como afirma Júlio César em seu livro "A Guerra das Gálias"

- Dizem que alguns druidas gauleses colocaram em César a maldição da Vida de Merda, o que o levou anos depois a ser apunhalado pelos senadores na sua volta triunfal à Roma, incluindo seu próprio filho adotivo, Brutus. Suas últimas palavras, como disse Tito, foram "To quoque Brutus, fillium meum! Merdarius vitae!" ou seja "Até tu Brutus, meu filho! Vida de Merda!"

- Na aurora de Roma, povos estrangeiros tentaram invadir a Cidade Eterna durante a noite através de uma incursão silenciosa no Monte do Capitólio. Infelizmente, o Monte do Capitólio era o viveiro dos Gansos Sagrados do Capitólio, que furiosamente (e ruidosamente) atacaram os invasores, alertando o exército da cidade. A guarda municipal subiu o capitólio e viu os bárbaros lutando ferrenhamente contra as aves, gritando "Vida de Merda!" enquanto tentavam não virar foie gras nas mãos dos penosos.

- Por fim, caiu o Império Romano. Os vândalos chegaram para saquear o que sobrou de Roma. Os nobres romanos, embriagados por mais uma orgia, receberam os invasores cantando em coro "Vida de Meeerda!! Não é fácil ser romaaanoo!", numa cena linda e épica descrita por pintores bárbaros como exemplo da fortitude e integridade de um povo conquistado.

Após a Idade Antiga acabar, a humanidade passou pela Idade da Vida de Merda, que os renascentistas renomearam de Idade das Trevas. Foi o período de maior azar para a humanidade até então. A Vida de MErda torna-se a base da sociedade naquele tempo:
- Plebeus não eram escravos, mas não podiam desobedecer, fugir, se rebelar, não pagar impostos e tinham de trabalhar vários dias na semana nas terras do senhor feudal sem receber nada em troca. Vida de Merda detected: Plebeus eram escravos.

- Os vikings expandem seu reino de conquista, terror e bebidas fermentadas. O mosteiro inglês de Lindisfarne foi atacado e destruído, seus tesouros saqueados e os monges mortos. As Sagas da era de ouro dos Vikings descrevem que, ao avistar os navios nórdicos se aproximando, os sacerdotes do mosteiro já dobravam os sinos enquanto corriam apavorados gritando "Ye Olde Crap Life! Ye Olde God shall help ye olde us!", o que apenas acrescentou glória aos relatos dos conquistadores do mar.

- Inimigos dos escoceses tentam invadir um castelo à noite (provalvemente eram decendentes dos espertos que escalaram o Capitólio para atacar Roma). Planejaram atravessar o fosso a nado e entrar sorrateiramente na fortaleza. Tiraram os sapatos e entraram na água, mas não podiam adivinhar que o fosso não estava cheio de água, e sim de Cardos. Desde então, o cardo é a planta mais espinhenta símbolo da Escócia. Dizem que até hoje ecoam nas colinas os gritos dos invasores ao bradar "Vida de Merda!"

- Guerra vai, guerra vem, a Peste Negra assola a Europa, matando um terço de sua população. A Vida de Merda torna-se um lugar-comum nos idiomas do Velho Mundo.

- Chega a vez do Império Romano do Oriente cair. Os exércitos Bizantinos, ao avistarem o imenso exército dos Turcos Otomanos, pensam se já não é ora de dizer Vida de Merda. Afinal:
* Dizia a profecia que Bizâncio só cairía se a lua não brilhasse mais sobre o céu. Ocorreu um eclipse.
* O Espírito Santo protegia Bizâncio. Uma erupção vulcânica no outro lado do mar iluminou o horizonte, e quem olhasse para a magnífica basílica de Hagia Sophia veria um clarão partindo da abóbada e subindo aos céus.
* Um dos grandes mistérios da história: Bizâncio era protegida por muralhas sólidas e um portõa imenso. Não sabem até hoje como os bizantinos esqueceram o portão destrancado.
* O último imperador bizantino lutou junto com seus homens nas ruas. Ele lutou sem armadura ou distintivos reais. Foi morto e enterrado em uma vala comum. Dizem as lendas que alguns turcos o reconheceram pelas botas violetas, a cor da realeza. Eles teriam se entreolhado e concordaram que era uma prova da famosa Vida de Merda da qual os ocidentais falavam durante as cruzadas.


E desde então a humanidade vem evoluindo enquanto involui, e a Vida de Merda a acompanha. Episódios famosos incluem
Galileu na Inquisição:
Inquisidor: "Tu negas as tuas teorias de que a Terra gira ao redor do Sol?"
Galileu: (em tom normal) "Ok, ela não gira". (Falando baixinho) "Mas ela gira".
Inquisidor: "Como é que é?"
Galileu: "Vida de Merda..."

Galileu passou o resto dos dias em prisão domiciliar impedido de fazer ciência.

Rei Felipe de Espanha após mandar a Armada invadir a Inglaterra:
Mensageiro: Meu rei, a nossa armada, a mais poderosa do mundo, invadiu a Inglaterra da rainha Elizabeth.
Rei Felipe: Ótimo! Quais são as notícias?
Mensageiro: Bem... Uma tempestade destruiu a maior parte dos barcos, e os ingleses tocaram fogo no resto. Mas parece que alguns pescadores conseguiram voltar.
Rei Felipe: ! (Desmaia convulsivo)
Mensageiro: É... Vida de Mierda!

A destruição da Armada foi a mais vergonhosa derrota espanhola e depois disso o reino não conseguiu mais se reerguer.

Nascimento do Capitalismo:
Nobre: Olá comerciante. Vi que tu tens bela prataria.
Comerciante: Poderias ter tudo o que ofereço, meu senhor.
Nobre: Então abre preço! Preferes pagamento em porcos ou em sacas de farinha?
Comerciante: lol (e fecha a porta da lojinha na cara do nobre, expondo o cartaz "Pague em ouro".
Nobre: Vida de Merda!


Revolução Francesa:
Rei Luiz: Mordomo 212! Vá lá fora ver que algazarra é essa nos portões. Meus convidados estão perturbados! Se for o povo pedindo comida de novo, raspe as sobras dos pratos dos cães.
Mordomo vai.
Mordomo volta: Meu rei, o povo se rebelou. A burguesia está ajudando a plebe. Parece que a Bastilha caiu e uma multidão armada está vindo para cá.
Rei Luiz: É sempre assim, ninguém nunca está contente com o que tem. O que eles querem dessa vez?
Mordomo: Vossa cabeça, majestade.
Rei Luiz: Rápido! Manda preparar minha carruagem! Ah, Vida de Merdé!

O rei Luiz foi pego fugindo da França. A família real foi executada.

Com o avanço regressivo da humanidade, avançou também o padrão da Vida de Merda. Hoje em dia, nos "tempos mordernos", a Vida de Merda faz parte de nosso dia-a-dia: Ela está no pé do motorista de ônibus que acelera ao invés de parar enquanto voce está praticamente dançando no ponto de ônibus mais do que uma corista de can-can. Ela está na mão do seu chefe que dá a promoção ou troca de setor (promoção) para o seu colega puxa-saco enquanto voce continua quietinho onde está com um sorriso amarelo na cara. Ela está no risinho diabólico da professora quando você chega na aula após o ditado ter começado há dez minutos, ou quando ela te entrega uma prova surpresa sobre a matéria daquele dia em que você faltou.

A Vida de Merda está em nossas vidas. Ela não degenerou, continua brotando em profusão de nossos lábios. Perdemos a carteira, acabam os créditos, levamos um pé ou um fora, nossos parentes vêm nos visitar (ficar na nossa casa), o cara da frente pega a última senha do banco, somos colocados na fila dos que "querem servir", o vizinho dá uma festa na véspera da sua prova de recuperação... A Vida de Merda é parte indiscernível do homem moderno.

Grite Vida de Merda. Liberte-se.

domingo, 16 de agosto de 2009

::: A de Anúbis


TENHO em mente um projeto baseado no blog de um ilustrador, infelizmente não me lembro seu nome e já não consigo achar o seu blog. Ele estava usando o alfabeto como fonte de inspiração para desenhar divindades. Id est = Na vez da letra A, ele ilustrava uma divindade que começasse com essa letra, e assim por diante.

Apesar de adorar desenhar, não pretendo exibir aqui meus dons nessa arte complexa do rabisco admirável... Mas gostei da forma proposta e vou segui-la.

Acontece que assim como o ilustrador anônimo, vítima de minha memória ruim (e da limpeza periódica do histórico do Firefox), encontrei uma "dificuldade" na hora de começar. A, bem sabemos, é a primeira letra de nosso adorado alfabeto, e quem é a primeira divindade que toma conta do consciente de qualquer um que tenha em mente pelo menos uma dúzia de deidades antigas?
Afrodite!

(Deception haze)

Mas, tal como o ilustrador anônimo, resolvi começar pelo Deus egípcio do julgamento e do tempo após a morte. Por isso, hoje é

::: A, de ANÚBIS

Anúbis é um deus ligado ao tempo. Por isso, se voce estiver interessado na biografia Dele, consulte a wikipédia na língua que lhe parecer melhor (http://pt.wikipedia.org/wiki/Anúbis), (http://en.wikipedia.org/wiki/Anubis), (http://sv.wikipedia.org/wiki/Anubis).

Dizem os historiadores que os egípcios antigos associaram Anúbis (versão grega de Inpu, ou Anupu, como falavam a velha e boa gente egípcia) com o chacal - aquele ser que parece um cão mas não é um cão! - por causa dos hábitos desse animal: os chacais rondavam as necrópoles, afinal, eram também carniceiros e podiam escavar túmulos para procurar comida. Isso conferiu a Anúbis não só uma caracterização antropozoomórfica de guardião/vigia dos lugares dos mortos, mas também lhe deu um tom, uma vez que a cor preta à qual é associado está ligada não ao chacal, mas à cor dos cadáveres embalsamados com natrão (vulgo múmias) e, o que acho mais interessante, ao preto que também era a cor da terra fértil depositada nas margens do Rio Nilo nos tempos de cheia, o que simbolizava o renascimento através da promessa de uma nova vida.

Anúbis é filho da Noite e do Juízo, ou, dizem outros, da Noite e do Deserto. Talvez o mistério a cerca de seu genitor o tenha feito protetor dos órfaos. Daqui pra frente, o resto das informações fica pra wikipédia e além. Eu poderia escrever textos sem fim só sobre minha admiração pela visão de morte que os egípcios tinham, mas vou (tentar) me ater somente a Anúbis. Ele é uma das dezenas de divindades associadas ao pós-vida, o que só contribuiu para as horas em que os romanos ou gregos antigos diziam que os egípcios eram um povo fúnebre!
Fúnebres, definitivamente não. O produto de exportação cultural do Egito antigo era a vida após a morte, tal como o futebol de qualidade e o samba foram para o Brasil, tempos atrás (sighs). E assim como o Brasil não é só carnaval e mulatas, a cultura egípcia ancestral não era só morte e areia. Diferenças culturais, sempre. Hoje, muitos querem poupar dinheiro para construir a casa própria e comprar um carro; e no Egito antigo, os nobres poupavam dinheiro para comprar um Livro dos Mortos e garantir a salvação no Paraíso.

O Mundo dos Mortos no Egito era povoado por monstros medonhos. E isso é muito importante caso voce seja uma alma penada do mundo egípcio: cuidado! em cada esquina e atrás de cada duna há um monstro querendo devorar sua alma. Era onde Anúbis entrava. Ele era o protetor dos mortos. Dos mortos: O perigo não acabava durante a vida, ele continuava após a morte até o momento em que a justiça fosse feita, pois o morto devia achar seu caminho através das Portas do Destino e chegar ao Salão do Julgamento, onde Anúbis o deixava em segurança para ser julgado.
Quem sabe quem foi Tutancâmon também sabe que era Anúbis o responsável por colocar o coração do morto em um prato da grande balança do juízo final, enquanto Ma'At depositava a Pluma da Verdade no outro prato. Anúbis ajustava os pesos e verificava: Só chega ao Paraíso aquele cujo coração não pesar mais do que a Verdade.

Anúbis, deus que protege aqueles que já se foram, aquele que protege os que não tem ninguém, aquele que protege os que se vêm sozinhos. Os mortos, as almas, os agonizantes, os órfãos. Na verdade, nunca estiveram sozinhos. Sempre há um poder maior. A solidão é um período de trevas, mas ali está Anúbis: ele é filho da sombra da noite, não a teme porque ela corre em seu sangue, ela lhe é familiar. Não voltamos nossos olhos para a escuridão, talvez já não acreditemos que há alguém lá para nos proteger em meio a tanta angústia. Não estamos sozinhos, não totalmente.
Era hábito que uma estátua de Anúbis encabeçasse uma procissão. Afastava a má-sorte, é o que gosto de pensar. O tempo abrindo caminho. Anúbis era associado com coisas que hoje já não nos fazem sentido, como a mumificação, mas vão-se os hábitos e fica a essência. Enquanto os faraós eram embalsamados por devoção, de repente alguns nobres eram embalsamados por amor.

Mesmo os mais ímpios receberam os ritos fúnebres, e me pergunto para quê... Se acreditavam que a alma só alcança a imortalidade com o corpo devidamente preservado, deviam acreditar no que diziam os sacerdotes sobre o Lago de Fogo e a Devoradora de Almas. Mas parece que desde os tempos das pirâmides não nos preocupamos muito com justiça terrena. Assim como parece que a hipótese de justiça divina sirva apenas de consolo para os que são vítimas da injustiça dos grandes ou para mascarar nossa impotência.

Bem, chega. Sempre gostei de Anúbis. Para mim, sempre foi um deus calado. Por vezes, penso que Ele era amargurado. Não sei se era por ter sido filho de um adultério ou por que o ofício dos mortos é um dever ingrato, mas há algo que sempre vejo quando olho nos olhos do grande chacal: ninguém está sozinho. Ninguém deve ficar sozinho. Se não houver um par de mãos dispostas a embalar os esquecidos ou cuidar dos agonizantes, pode ser que mais ninguém o faça. Há Deuses para o Sol, para o Nilo, para o Trono e para a Fertilidade, mas consagrado como mumificador havia apenas um, um grande, e adorado por isso. Talvez, Ele não cuide das almas e dos cadáveres por prazer, e sim por obrigação. Talvez só lembrassem dele nas horas em que sangraram, exalaram pela última vez ou perderam a fé no outro mundo, mas Ele não se preocupou. Lembrem dele ou não, ofereçam-lhe preces ou não, cedo ou tarde chegaria a hora em que Ele os escutaria. E Ele jamais negará seu dever.


--------- PS: -------------------
Jumbriano: E aí, Heródoto, que achou do texto?
Heródoto: ¬¬
Jumbriano: Pensei em combinar o encerramento com a frase do Rabelais "O tempo traz tudo, para quem sabe esperar."
Heródoto: (sighs) prefiro o ditado egípcio: "De nada vale a fortuna para o homem sombrio."
Jumbriano: Arrasou de novo cara!
Heródoto: Ósculos, menino.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Outra de Esopo

Essa fábula servirá para um texto que espero postar em breve

O Homem e o Leão
Um homem e um leão eram companheiros de jornada, e ao longo de sua conversa começaram a vangloriar suas próprias proezas, cada um dizendo-se superior ao outro em força e coragem. Estavam discutindo acaloradamente no momento em que chegaram a uma encruzilhada onde havia a estátua de um homem estrangulando um leão.
"Olhe!" Disse o homem, triunfante "Veja só isso! Não é a prova de que nós somos mais fortes que vocês?"
"Não tão rápido, meu amigo" disse o leão "Este é apenas a sua visão sobre o caso. Se nós leões pudéssemos fazer estátuas, pode estar certo que na maioria delas você veria o homem embaixo"

domingo, 2 de agosto de 2009

Primeiro de Agosto

MAS olhe! Publiquei um texto novo sem nem ter me tocado que ia ser o primeiro post de Agosto. Agosto, mês de desgosto, mês do cachorro louco, et al...
Agosto, mês mal-afamado por causa dos eventos catastróficos que nele ocorreram (e.g. Guerras Mundiais e bomba atômica)... Talvez haja uma relação entre o meio do ano e a tendência humana de quebrar a monotonia com o caos e a calamidade. Enfim, viva Agosto, que seja um mês de confabulações com fábulas para todos nós!

For ye purists:
AN olive tree taunted a fig tree with the loss of her leaves at a certain season of the year. "You", she said, "lose your leaves every autumn and are bare till the spring; whereas I, as you see, remain green and flourishing all the year round". Soon afterwards there came a heavy fall of snow, which settled on the leaves of the olive so that she bent and broke under the weight. But the flakes fell harmlessly through the bare branches of the fig, which survived to bear many another crop.

Lembra Victor Hugo: "Mude as idéias, não os princípios. A árvore troca de folhas, não de raízes."

O Lance na Mesa

À MESA, estavam cinco. Uma velhota amarrotada, tanto na pele quanto nas vestes, medonha e desdentada. Sob o capuz negro, mechas ensebadas de cabelo branco imundo. Ao lado da desagradável, uma donzela linda de lábios negros como o carvão, pele branca e doentia, e mãos tingidas pelo sangue vívido. Alisando a barra de veludo preto do vestido da donzela, um homenzinho corcunda e de olhar claudicante, sua aparência deplorável despertava compaixão, parecia sentir-se indigno de estar ali.
Do outro lado do móvel de pedra fria, na cadeira de espaldar alto, uma mulher de meia-idade com longos cabelos grisalhos que formavam ondas, como uma cascata de fios de prata que desaguavam em seu seio. Sua bata perolada era límpida e imaculada. Ao lado dela, esparramada na cadeira e com as pernas abertas, uma jovem de pele rubra que parecia pulsar com o calor da emoção. Sorria, boba, e seus cabelos negros e secos chacoalhavam sem vento algum soprar por perto. E, por ser estranho, embaixo da mesa estava a outra figura: um esqueleto enrolado em mantos escuros, mas não tinha face visível por baixo de seu capuz. Na verdade, não tinha face, apenas o liso das vértebras e o fundo da caveira sem expressão. Foi ele quem começou a rodada: de onde estava, estendeu o braço descarnado e dobrou-o por cima do tampo da mesa. Abriu a mão e deixou cair o objeto desejado: a alma. E, de longe, contemplando aquela cena em total horror, o morto via sua essência sendo alvo de cobiça naquela mesa de aposta.
Com a voz das pragas e do luto, a donzela de preto, cobiçosa, deu o primeiro lance:
– Aposto mil lágrimas de órfãos e doze gritos de viúva! O morto é meu, pois quero o que fui buscar!
– Teu não! É daquele que oferece um dia de descanso para cada seis dias de labuta, e quatro horas de repouso para cada dez horas de vigília e mais outras de andança! – e era a mulher grisalha de bata perolada batendo o punho fechado e calejado no tampo de pedra. O homenzinho às costas da dama de negro ergueu os olhos, malicioso.
– Brincas! Há de ser de quem oferece a náusea da bebedeira, a ardência do cio e ânsia do quero-mais! – disse a moça de cabelo esvoaçante, rindo descontrolada e erguendo alto uma taça cheia de delírio.
– Ouve! Que não há quem pague coisa que preste pelo que nada vale! – e era a velha hedionda que grunhia, seu hálito nauseabundo espalhando-se – é uma aposta o que temos aqui, não um leilão! Que dar lágrimas, dias ou náuseas que nada, esta vulgaridade mais merece que eu aposte mais vinte e oito anos de vazio e mais dois minutos de suicídio! – e ergueu-se de supetão, suas unhas podres riscando a pedra da mesa. Viram que ela não tinha ventre, era seca na altura do abdômen tal como um caniço estiolado.
– Cala-te, tu que nada dá! – e a moça que ergueu a taça, ao dizê-lo, fazia mofa da velhota, rindo de sua cara carrancuda – é preciso dar para poder sentir, é preciso ferir para ver sangrar, é preciso gritar para sentir a vida!
– Volúpia! Isso é o que escuto – gritou a mulher de bata, que não podia mais suportar. Ela também levantou-se, e não tinha cor ou enfeite ao longo do corpo magro, apenas o mesmo tom, a mesma textura e o mesmo traço – para viver é preciso não viver, é agora que se pode entender a vida! A vida vivida não é vívida, a vida é vida quando a desvida é vivida!
O ratapulgo corcunda cuspiu no chão, e a moça de lábios pretos falou, desdenhosa:
– Escutaste volúpia, trabalhadeira? Pois eu escuto falácia, e a da tua voz! Desvida é assunto meu, é meu pseudônimo! É o nojo dos ossos e o asco da carne que fará entender a vida; é o medo do mundo e o beijo do escuro que fazem mais macia a sepultura, mais até do que a cama embolorada ou o berço esquecido! É o câncer amargo que delicia a existência finda, é o corte da lâmina que risca o riso tolo na face e nas mãos de quem foge de todas vós e corre para meu colo!
E antes que alguém protestasse, uma voz desesperadora soou, chorosa, e vinha de baixo da mesa. Era um lamento, não um discurso, e queria ser ouvida até quando falava só:
– Eu não sou deste mundo! Nem do outro, nem do de vocês, nem do da aposta! Sou do mundo dessa alma, sou pervertido e não quero olhar, mas quero beber do suco agridoce que escorre das horas perdidas, da vida vazia e da face em pânico! Quero saber o que é dar o lance nessa aposta, quero viver a emoção de tentar e ser tentado, sentir a vida mais vazia e a carne mais fraca!
– Cala-te, maldito! Ninguém aqui na mesa quer te escutar! – gritavam as quatro, mas aquele sem rosto continuou, e se tivesse órbitas, elas estariam inundadas:
– Quero o regozijo dos lençóis amarrotados e o deleite da dor nas juntas! Quero apreciar o desespero de ver-se vazio e incolor e mesmo assim nada poder fazer! Sou eu quem mais quer ganhar a aposta e receber o prêmio, mesmo sem poder desfrutá-lo, mesmo sem saber amá-lo! Que importa o fim para mim, quando não tenho nem o começo? Que importa a morte quando não sei o que é vida? Deis chance a mais um defunto que, como eu, morreu sem saber o que é viver!

As quatro não falaram mais nada. Trocaram olhares. O preço era justo. A dama de negro deu a volta na mesa e chutou para longe os ossos daquele que acabara de falar. A moça da taça riu e saiu correndo atrás do esqueleto sem rosto, humilhando-o e exibindo-se. A velha infecta começou a proferir obscenidades e pragas, e retirou-se arrastando o passo pesado de quem caminha sem ter para onde ir. O corcunda insignificante correu para seguir a dama de preto quando esta também se retirou com passos largos mas que avançavam muito pouco (e a cada passo, mas sangue pingava e mais gritos se ouviam).
E por fim ficou apenas a mulher calejada à mesa. Sua veste limpa balançou por um momento. Mas ela também foi embora, não sem antes deixar sobre a mesa um naco de pão duro e duas moedas de nenhum valor.
Quando o morto, até então distante e apavorado, correu para abraçar sua querida alma mais uma vez, não viu ninguém ao redor. Não ouviu mais nada por um longo tempo, até que, lentamente, ouviu uma batida ritmada tão lenta que mal conseguia ouvi-la. Era hora de ir. Para onde? Para o quê? Mas fechou em uma mão sua alma, e levou-a para perto do peito vazio. Com a outra, agarrou o naco de pão velho e as moedas que não tilintaram por não valerem nada. E saiu correndo, desesperado. Quando fechou os olhos enegrecidos, no fundo desejava mais do que nunca acordar na mesma banheira, com a mesma faca na mão, mas sem o sangue e sem as lágrimas, e sem aquele pânico que agora o fazia correr como o diabo da cruz.

Não é importante se o morto acordou, nem onde acordou, caso tenha conseguido. Muito menos como acordou. Também não é importante o quanto nem como ele viveu, pois não encheria uma linha se contassem apenas os fatos relevantes para ele ou para nós. Antes, o que importa é a dúvida: se à mesa estavam cinco, quem estava sobrando? O sem rosto ou o corcunda? Bem, era o corcunda, pois ele era a Bajulação, que tem medo da morte e nunca se expõe. E ele, de tão insignificante, de tão vulgar, não conta como um daqueles que um dia sentaram-se à mesa para mais uma aposta.